A deputada cessante Constança Urbano de Sousa acusou um conjunto de figuras do Partido Socialista, entre as quais o histórico Manuel Alegre, de ter exercido pressões para que desistisse de apresentar alterações à Lei da Nacionalidade para corrigir a concessão da nacionalidade portuguesa a cidadãos estrangeiros descendentes de judeus sefarditas expulsos no final do século XV.
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"Devido a pressões ao mais alto nível, acabei por recuar duas vezes. Primeiro, deixei cair a exigência de dois anos de residência, substituindo este requisito por uma qualquer conexão relevante a Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui também obrigada a desistir desta proposta", afirma em entrevista na edição desta segunda-feira do jornal "Público".
Publicada em vésperas de deixar o Parlamento (por decisão sua, não foi candidata nas listas do Partido Socialista nas eleições legislativas de janeiro), a entrevista tem como pano de fundo a polémica em torno de processos de naturalização de cidadãos estrangeiros como o multimilionário russo Roman Abramovich, ao abrigo do regime especial da Lei da Nacionalidade, introduzido em 2013, para descendentes de judeus sefarditas, que a Procuradoria-Geral da República está a investigar.
Na entrevista, Constança Urbano de Sousa responsabiliza "alguns dos chamados "senadores" do PS", que "moveram nos órgãos de Comunicação Social, e provavelmente fora deles, mundos e fundos para evitar qualquer alteração a esta lei".
Entre os "senadores", a ex-ministra da Administração Interna e vice-presidente cessante do Grupo Parlamentar do PS identifica o histórico Manuel Alegre e os ex-deputados e ex-ministros Maria de Belém Roseira, José Vera Jardim e Alberto Martins.
Uma lei injusta
"Não nos reconhecemos nas alterações que subvertem a Lei de 2013. Como portugueses e como socialistas, reclamamos uma tomada de posição de responsáveis do Grupo Parlamentar, do Governo e do Partido", escreveram, num artigo publicado em 23 de maio de 2020, no "Público".
A alteração então defendida pela deputada do PS significaria a revogação da Lei Orgânica n.º1/2013, aprovada por unanimidade, como "reparação histórica de atrocidades sangrentas e vis, sem paralelo, que perduraram séculos, dirigidas contra um povo que foi expulso da terra onde habitava e que era sua "antes de haver nome Portugal"", acrescentam.
Especialista em Direito da Nacionalidade, a jurista questiona a alteração de 2013, com base em projetos do PS e do CDS, alegando que, em observância do princípio da igualdade, além dos judeus sefarditas deveriam ter sido considerados outros cidadãos, "já que o édito de D. Manuel de 1496 não determinou apenas a expulsão de judeus, mas também de mouros".
Constança Urbano de Sousa considera, também, que a lei é injusta para com cidadãos naturais das ex-colónias que, em 1975, aquando a sua independência, estavam a residir em Portugal, tendo muitos deles permanecido apátridas ao não adquirirem a nacionalidade dos novos países.
Quando, em 2020, presidiu a um grupo de trabalho para a revisão da Lei da Nacionalidade, a pretexto de vários projetos abrangendo comunidades de imigrantes, a deputada viu "uma oportunidade de tornar a lei mais conforme às obrigações do Estado português no domínio do Direito Internacional e do Direito da União Europeia".
A lei em causa "desrespeita o princípio da nacionalidade efetiva" internacionalmente consagrado, segundo o qual "um Estado deve dar a sua nacionalidade apenas a quem tenha com ele, ou com o seu povo, uma qualquer conexão materialmente relevante, na atualidade", justifica.
Por isso, propôs, então, a exigência de um período mínimo de residência de dois anos, sinalizando-a como "um pressuposto do vínculo jurídico nacionalidade", o que "pressupõe que alguém viva numa comunidade".
A alteração de 2013 afastou, de forma expressa, os requisitos da residência em território português e o de "conhecerem suficientemente a língua portuguesa", estabelecendo que o Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização "aos descendentes de judeus sefarditas portugueses, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direita ou colateral".
Manuel Alegre e Ribeiro e Castro reagem
Reagindo às acusações de Constança Urbano de Sousa, Manuel Alegre sustentou, em declarações à agência Lusa, que o grupo de ex-ministros e deputados considerou que as alterações defendidas pela parlamentar em 2020 constituíam uma nova lei e que devia ser respeitada a "lei de reparação histórica, devido às injustiças que os judeus sofreram em Portugal", de 2013.
O caráter de "reparação histórica" foi assumido nos projetos de lei do PS e pelo CDS e reiterado nas intervenções parlamentares dos deputados Maria de Belém Roseira e de José Ribeiro e Castro, um "ato de elementar justiça", segundo o PSD (Pedro Simões Ribeiro) e uma "tentativa de enfrentar o passado", na interpretação do BE (Cecília Honório), de acordo com o "Diário das Sessões" de 12 de abril desse ano.
Igualmente visado, o ex-parlamentar e líder do CDS José Ribeiro e Castro disse, ao JN, que as propostas de Constança Urbano de Sousa "não tiveram acolhimento de ninguém, porque não eram adequadas" e chamou a atenção para o facto de, por altura da alteração aprovada a lei original (37/81, de 3 de outubro), já dispensar os requisitos de residência e de domínio da língua aos "membros de comunidades de ascendência portuguesa".
Na entrevista, a ex-governante defende, ainda, que a lei portuguesa, à semelhança da espanhola, deveria ter fixado um prazo limite (quatro anos, no caso espanhol) para que os interessados se candidatassem ao reconhecimento da nacionalidade, para minimizar o risco de fraudes, "porque diz respeito ao passado e não deve prolongar-se no tempo".
"Essa questão nunca foi posta, porque a todo o tempo pode um descendente pedir a nacionalidade - se não for o pai, pode vir a ser um filho", explicou Ribeiro e Castro, considerando positivas as alterações ao Regulamento da Lei da Nacionalidade publicadas no dia 18, por precisarem os critérios de verificação da ligação a Portugal.
Tanto Ribeiro e Castro como Manuel Alegre defendem que são necessários "mais cuidados" na prevenção e na punição de abusos na atribuição da nacionalidade, e até que se impeça a publicidade a passaportes portugueses.