Cabrita é o mais visado, mas está seguro por ser próximo do primeiro-ministro e por o presidente querer "estabilidade". Politólogos acreditam que pandemia "obriga" a boa relação entre Belém e São Bento; remodelações não são para já.
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Em apenas uma semana, por duas vezes, o presidente da República fez reparos ao desempenho do Governo. Primeiro em relação a Odemira, onde exigiu "consequências políticas" acerca da situação dos imigrantes; depois, sobre os festejos do Sporting, ao apontar a "leveza excessiva" na preparação das celebrações. Estes não foram os primeiros reparos de Marcelo Rebelo de Sousa ao Executivo, mas o primeiro-ministro parece resistir a esses avanços e a uma eventual remodelação a pedido.
António Costa Pinto, do Instituto de Ciências Sociais, diz ao JN que Marcelo tem, cada vez mais, "um discurso de tipo prescritivo". "Assume-se muito como codecisor das instituições", acrescenta, exemplificando com o facto de na quinta-feira, à RTP, o presidente ter instado a Esquerda a aprovar o próximo Orçamento do Estado (OE).
Sobre o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, uma certeza: "Marcelo sabe que ele pertence ao "inner circle" [círculo íntimo] do Governo e, obviamente, não vai colocar-lhe a cabeça a prémio", diz o politólogo. Além disso, Costa Pinto considera que Cabrita "não cometeu nenhum erro dramático na governação", o que também pesa no julgamento do presidente.
Quanto à festa do Sporting, o politólogo entende que a crítica de Marcelo não foi centrada em Cabrita, mas sim "distribuída" entre alvos como a Câmara de Lisboa ou a PSP. Já no que toca a remodelações no Governo, lembra não ser "tradição" em Portugal que estas ocorram "sob pressão".
Para José Fontes, catedrático da Academia Militar, as palavras do presidente sobre a festa verde e branca foram "um ato de censura" aos organizadores, entre os quais está Eduardo Cabrita. O "acumular de eventos" - como Odemira ou a morte de um cidadão ucraniano às mãos de inspetores do SEF - e o facto de algumas sondagens mostrarem que Marcelo se deve "demarcar" do Governo fazem de Cabrita um dos alvos preferenciais do presidente, acredita.
Temido também foi alvo
José Fontes considera que as palavras de Marcelo durante a condecoração póstuma ao ex-ministro do PS Jorge Coelho - em que, numa nota no site da Presidência, falou da necessidade de "responsabilização política pelos erros ou falhas do Estado e das suas estruturas" - podem ser lidas como um "exemplo" do que o chefe de Estado entende que devem ser os governantes. "Falou dele como uma referência no âmbito de uma assunção de responsabilidades que, se calhar, até nem lhe cabiam", referiu, aludindo à demissão de Coelho após a tragédia da queda da ponte de Entre-os Rios.
José Fontes entende que Costa não é "adepto de grandes mexidas" no Governo. As que existiram nunca ocorreram "em momentos expectáveis" e, a fazê-lo de novo, o primeiro-ministro quererá escolher a melhor altura. Ela será decidida tendo em conta as autárquicas, o OE, a época dos incêndios ou o fim da presidência da UE, acredita.
Embora seja o alvo mais frequente, Cabrita não tem sido o único destinatário dos reparos de Belém. Em dezembro, na campanha eleitoral, o presidente afirmou que "os portugueses foram enganados" pela ministra da Saúde quanto ao número de vacinas para a gripe existentes. O comentário mereceu o repúdio do marido de Marta Temido nas redes sociais.
Em março, um braço de ferro com Costa quanto aos apoios sociais aprovados pela Oposição no Parlamento - que levou o Governo a recorrer ao Constitucional - levou Marcelo a lembrar que "é o Direito que serve a política e não a política que serve o Direito".
Ainda assim, Fontes e Costa Pinto concordam que as relações Marcelo/Costa são e continuarão a ser boas. Ambos são "grandes estrategas" e sabem que "as ruturas não podem ocorrer, ainda para mais em tempo de pandemia", refere o primeiro; se o presidente quer "estabilidade", "obviamente as relações com o Governo terão de ser boas", completa Costa Pinto.