"Sabes porque é que se chama crack? Não sabes, pois não? Eu explico-te, é por causa destes estalidos que a droga faz quando lhe chegas o lume. Ouves? Crack, crack, crack."
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E depois, Paulo, 55 anos, que tinha puxado uma longa baforada de ar na boquilha branca do cachimbo a estrear, a mão esquerda cuidadosa a amparar por baixo o fornilho, a direita a dar lume com o isqueiro por cima, desabre o peito que estava em tensão e solta dos lábios fremidos um fio azul fininho de fumo quase invisível. Encosta então a cabeça à parede e fica assim intermináveis segundos, o isqueiro vermelho, o cachimbo, as mãos inertes esquecidas no regaço, olhos fechados, sem se mexer. Quando os abre, levanta-se muito lentamente e depois parece que se eletrizou - e na próxima meia hora não se cala, a despejar um rodízio de assuntos, a matraquear eufórico sem parar. "Queres saber mais? O crack é a coca dos pobres, apareceu nos bairros pretos da América nos anos 80, depois em 90 chegou ao Brasil e logo logo já estava cá, é a base da cocaína, é mais forte, é mais barata, são pedrinhas brancas sujas, vês?, fuma-se com cachimbo ou na prata, dá-te um estalo de energia, é um "kick", é como um clímax, é assim, como é que eu hei de dizer, é às cores, é como um orgasmo cerebral, e sentes-te sempre o maior. Já chega ou queres saber mais?".
A ONG que nunca paralisou
Joana Sanches, enfermeira, e Rute Mendes, psicóloga, são desde há um ano a equipa de Barcelos dos Médicos do Mundo e atendem 154 pessoas por mês no projeto de Redução de Riscos e Minimização de Danos aplicado a utentes de substâncias psicoativas e álcool, entre sem-abrigo, trabalhadores de sexo e migrantes. São 10 da manhã e elas estacionam a carrinha branca do atendimento móvel debaixo das árvores frescas, junto ao chafariz, no Campo da República. Ficam ali até ao almoço, depois fazem rondas por Arcozelo, que concentra utentes dependentes de consumos fumados, por Feitos, onde estão as trabalhadoras do sexo nos matos da EN 103, numa maioria de brasileiras, e cruzam os sítios sombrios de Barcelos no apoio médico, sanitário e psicossocial às duas dezenas de sem-abrigo da cidade. A ronda é três dias por semana; nos outros dois atendem no escritório-consultório, e continuaram ativas, ao contrário de outras ONG que paralisaram com a pandemia do coronavírus e desprotegeram utentes já de si carenciados. Há agora só uma diferença ritual: usam máscaras, desinfetam compulsivamente as mãos e mantêm distância social - mas sem perderem empatia com os utentes, que já conhecem bem.
Elas confirmam: as necessidades de Barcelos estão muito ligadas à cocaína-base, isto é, ao crack, e ali há mais consumos fumados do que injetados; muitos são ex-injetores de heroína em programas de substituição com metadona, que tomam diariamente, gratuitamente, mas a maioria não superou a adição ao crack. Por essa razão, um dos itens mais requisitados é o kit de cachimbos de vidro acrílico que a instituição já distribui há anos, a expensas próprias e que nunca entrou nos apoios estatais. Essa conjuntura acaba agora de se alterar com o impulso da Gulbenkian (ler ao lado), que doou 300 mil euros do Fundo de Emergência Covid-19 a 30 ONG, incluindo à Médicos do Mundo.
o bicho que não pára de roer
Naquela sexta de manhã, chegou ali Carlos, 54 anos, alto, esguio, nervoso - "preciso de um café para me acalmar, sim, o café a mim acalma-me", diz ele atrás dos olhos pretos miúdos, a recolher o copo que a psicóloga Rute lhe estende num sorriso a fumegar. Levou a "saboneteira" com o kit de cachimbo para o crack, e tomou num trago só, como se bebesse um "shot", as gotas da metadona, que há cinco anos toma em redução gradual - "ainda estou nos 70 miligramas, isto não é fácil de largar", diz Carlos a voltear o olhar.
O seu desvio começou aos 15 anos e a partir daí foi abissal. "Andava com os maduros, más companhias, é sempre assim, ninguém entra aqui sozinho, sozinho é quando queremos sair. Primeiro foi haxixe, depois heroína fumada, depois a injetada, depois o crack, consumi balúrdios, nem me quero lembrar".
Entrado e derrotado em três desintoxicações, Carlos reergue-se um dia de cada vez. "Se tivesse emprego já não estava nesta merda, ando aqui a arrumar carros, a mão a pedir, mas quem é que dá emprego a alguém como eu?". E depois faz uma confissão de arrepiar: "Já partilhei cachimbos, eu sei, não se pode, já partilhei seringas, eu sei, é pior, é a merda da ânsia de consumir, é um bicho que não pára de roer. E já apanhei hepatite C, pois é. Mas agora ganhei juízo, não partilho com ninguém. Mas gosto tanto de fumar, gosto tanto da sensação, nem consigo descrever. Mas depois arrependo-me, caio em mim, sinto-me mal, quero desistir, prometo desistir" - e Carlos crava os olhos no chão, cheio de piedade por si próprio -, "mas estou sempre a cair".