O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) está a comprar milhares de kits de cachimbos para distribuir aos consumidores de crack, apurou o JN junto da direção do organismo do Ministério da Saúde.
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Os kits, gratuitos para utentes da substância estimulante ilícita altamente viciante que tem por base a cocaína, começam a ser entregues em julho. É uma medida inédita com esta dimensão.
A distribuição será feita por via de 30 ONG que operam na rua (Norte: 15; Centro: 7; Lisboa: 6; Algarve: 2), no âmbito das políticas de Redução de Riscos e Minimização de Danos. A Direção-Geral da Saúde, que gere os programas prioritários de VIH/tuberculose e hepatites virais - e que há 27 anos criou o projeto de troca gratuita de seringas para utentes de heroína - já deu a sua anuência.
Estima-se que a operação especial cachimbos de crack "pode ter um custo de 205 mil euros", revelou João Goulão, diretor-geral do SICAD, ao JN.
A verba sairá do bolo de 300 mil euros que a Gulbenkian doou "e já transferiu para o SICAD ao abrigo do Fundo de Emergência Covid, através do qual a Fundação quer contribuir para mitigar a pandemia", diz a assessoria da instituição.
Ação de urgência
"É um apoio que muito nos sensibiliza, por espontâneo e não solicitado", disse João Goulão. Os restantes 95 mil euros do bolo Gulbenkian serão usados em máscaras e fatos de proteção e reforço de equipas.
"Desde há muito que as ONG defendem a disponibilização de kits com a parafernália usada no consumo fumado", diz Goulão. Na pandemia, a necessidade ganha urgência - porque muitos utentes partilham cachimbos entre si, podendo, se infetados, propagar contágios.
"Há anos que defendemos a distribuição alargada de kits de fumados, que nós aqui, no GAT, já fazemos a custo próprio", alerta João Santa Maria, coordenador da ONG da Mouraria, em Lisboa. "Custam 1,75€ e são da francesa Perpan - são simples, é um tubo e rede de filtrar. Mas, creio, também receberemos os da One User, da Índia, iguais aos da Médicos do Mundo. "São muito bem-vindos. Contamos recebê-los dentro de dias. Esperemos que continue após a pandemia, a necessidade manter-se-á. Vamos fazer força", disse.
Também Carla Paiva, diretora-executiva da Médicos do Mundo, instituição que opera com equipas de rua em Lisboa, Porto e Barcelos junto de utentes de droga, álcool e trabalhadores de sexo, vê com agrado a decisão do SICAD. "A necessidade não é de agora, mas com a covid ganhou óbvia urgência". A ONG distribui aos utentes mais de três mil cachimbos grátis por ano, mas cada um custou 2,8€. "Somos autónomos, decidimos há muito cobrir essa carência. Não devemos colocar o ónus todo no Estado, devemos ser proativos, é o que fazemos já há anos".
Pormenores
Droga estimulante - O crack é a cocaína, um alcaloide estimulante, solidificada em cristais, parecida com açúcar mascavado rugoso. Resulta da conversão do cloridrato de cocaína em "base livre" após mistura com bicarbonato de sódio e água. É a 2.ª droga mais viciante (a 1.ª é a heroína).
Efeitos de euforia - A substância é fumada em cachimbo, com chama direta na substância, ou em papel prata. Utentes descrevem efeitos de prazer: euforia, autoconfiança, agitação, energia, e ainda insónia, irritabilidade, taquicardia, tremor, perda de apetite, espasmos, paranoia. O efeito de 5 minutos é rápido e intenso.
Uma dose custa 5 euros - A quantidade de cocaína e crack em circulação na Europa é a mais alta da década. Numa rua de Lisboa ou Porto, a dose de crack custa 5€; a cocaína custa 50€ o grama.
3,5 milhões na Europa - Os observatórios de drogas não diferenciam utentes de crack e cocaína. Haverá 3,5 milhões de utentes na Europa (15 a 64 anos). No 50 países europeus, Portugal é 24.º. Nos 28 países da UE, Portugal, Itália, França, Bélgica, Irlanda e Reino Unido, é onde mais sobe o consumo.
66 mil em tratamento - 55 mil portugueses estavam em tratamento em 2017 por consumo de cocaína (14% de todos os utentes de drogas em tratamento) e 11 mil por crack - estes estão associados a "comportamento marginal" e a "meios socialmente desfavorecidos", enquanto a coca em pó se associa a estratos sociais elevados.