Os cuidados paliativos continuam a não chegar à maior parte dos portugueses. Há crianças e adultos sem alívio do sofrimento na fase final da vida, garante Edna Gonçalves, ex-presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, que terminou o mandato em dezembro e ainda não tem sucessor.
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No terreno, as equipas não chegam sequer para cobrir metade das solicitações. A médica diz-se "chocada" por se debater a eutanásia no meio de uma pandemia, quando todos os dias se perdem dezenas de vidas. A versão final da lei, que permite a morte assistida, vai ser votada hoje na Assembleia da República.
À falta de alternativa legal em Portugal, continua a haver portugueses a procurar a eutanásia no estrangeiro. Em 2020, a associação suíça Dignitas ajudou um português a cumprir a sua vontade e a pôr termo à vida. Desde 2009 já morreram oito portugueses com a assistência da Dignitas, mas apenas cerca de 3% dos inscritos optam pela eutanásia. A Exit, outra associação internacional de defesa da morte assistida, conta, ao JN, que tem 51 membros portugueses inscritos e que recebeu, em 2020, doze pedidos de esclarecimento sobre o uso do nembutal, um fármaco utilizado para pôr fim à vida.
Mais pedidos domiciliários
A ex-presidente da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos e diretora do serviço de Cuidados Paliativos do Hospital de São João, no Porto, garante que são "muito raros" os pedidos de eutanásia.
"Acredito que, havendo eutanásia legalizada, possa haver mais pessoas a pedir, mas também tenho quase a certeza que muitos dos doentes que equacionam pedir a eutanásia deixarão de o fazer se forem bem suportados, não só do ponto de vista clínico, como social. Muitos desses pedidos têm a ver com a dor total, o sofrimento. Nós conseguimos controlar a grande maioria das dores físicas".
Edna Gonçalves defende que o tema está a ser debatido no tempo errado. "Choca-me que se fale de eutanásia neste contexto com tanta gente a morrer que não era esperado que morresse", refere a médica, admitindo que será objetora de consciência: "Não farei a eutanásia". E traça uma analogia simples que explica o raciocínio: "É oferecer morte a pessoas que têm fome, sem lhes dar primeiro o pão", leia-se terapêuticas que aliviam o sofrimento em casos de doenças muito graves, incuráveis e incapacitantes. Os cuidados paliativos "não estão nem a metade do que era necessário" e não foram reforçados com a pandemia.
"Devíamos ter 54 equipas comunitárias e temos 26 e, em termos de equipas pediátricas, tínhamos previsto 12 e temos sete", refere, ao explicar o plano traçado para 2020 pela comissão a que presidiu, quando os hospitais ainda não se batiam contra o novo coronavírus.
Em todo o país, há apenas 384 camas de internamento em cuidados paliativos. "As equipas não chegam. Não houve reforço, pelo contrário, até houve a necessidade dos profissionais serem deslocados para equipas covid-19 e há muitos doentes covid que precisam de cuidados paliativos e não chegámos para tudo".
A juntar às equipas subdimensionadas nos hospitais públicos, houve um aumento de pedidos de apoio domiciliário, provocado pelo facto de muitos doentes não quererem ir para o hospital com medo de uma possível infeção.
Associações pedem audiência a Marcelo Rebelo de Sousa
Um conjunto de associações de apoio à família pedem uma audiência ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e lançam um apelo ao preside do Parlamento, Ferro Rodrigues, para que o diploma que venha a legalizar a eutanásia não exclua a família dos procedimentos de antecipação da morte. "Não é aceitável" que se negue à família "a hipótese de ajudar", defendem 14 associações, apresentando "vários argumentos de inconstitucionalidade" do texto que será votado hoje no Parlamento.
Pormenores
Condições da eutanásia - O projeto de lei da eutanásia, que será votado hoje no Parlamento, prevê a despenalização da morte medicamente assistida, aplicando-se em casos de decisão da própria pessoa ou de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, ou ainda com lesão de gravidade extrema.
Avaliação médica - No texto legal, já aprovado na especialidade com os votos do PS, BE e PAN, é proposto que o processo seja seguido e avaliado por dois médicos, podendo haver a intervenção de um psiquiatra, caso o médico orientador tiver dúvidas sobre a capacidade do doente.
Médicos podem objetar - Fica garantida no texto legal a objeção de consciência de médicos e de enfermeiros. O diploma prevê que "nenhum profissional de saúde" possa "ser obrigado" a participar em processos de morte assistida.
Onde pode ser praticado - A morte medicamente assistida só poderá ser feita em estabelecimentos no Serviço Nacional de Saúde e em espaços do setor privado e social que estejam autorizados e tenham as condições de internamento e de acesso adequadas.
Se estiver inconsciente - O processo é interrompido se o doente ficar inconsciente. Só pode ser retomado quando o doente voltar a ganhar consciência e mantiver a decisão.
Quem fiscaliza - É criada uma Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte. A comissão tem cinco dias para emitir um parecer sobre o processo.