As consequências da exposição pública de dados clínicos de milhões de europeus, incluindo portugueses, são incalculáveis. Este tipo de informação vale milhões de euros e a esta hora já estará nas mãos erradas. Os lesados podem ser prejudicados durante toda a vida. No caso de doenças genéticas, haverá famílias inteiras afetadas. Os médicos pedem uma investigação ao mais alto nível e temem uma quebra de confiança nas notificações de reações adversas.
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Um ficheiro com 17 terabytes de informação clínica detalhada de pacientes europeus que sofreram reações adversas às vacinas covid-19 foi publicado online pelo regulador de saúde norte-americano (Food and Drug Administration ou FDA), como noticiou, esta sexta-feira, o Jornal de Notícias.
A informação foi confirmada pelo Infarmed e pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), que está a investigar a origem da divulgação e a tentar convencer a FDA a retirar a informação da internet. Mesmo que consiga, os danos já serão irreparáveis.
"A esta altura já é um caso perdido", assegura, ao JN, Ricardo Correia, diretor do mestrado em Informática Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Refira-se que a informação está acessível há várias semanas, tempo suficiente para cair nas mãos erradas.
"Há muitos anos que há um mercado negro na internet [darkweb] associado a informação clínica, paga-se por dados clínicos de pessoas", explica o docente.
Frisando que a "informação de saúde vale milhões", o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considera que o caso denunciado pelo JN merece "uma investigação ao mais alto nível". E deixa algumas perguntas no ar: "Será erro da FDA ou da EMA? Estará a EMA a dar informação a mais às farmacêuticas?"
Riscos a que os lesados ficam sujeitos
A informação divulgada pela FDA através da plataforma de farmacovigilância de vacinas americana (VAERS) pode ter vários destinos.
"Em termos informáticos é fácil cruzar dados e criar bases cada vez mais ricas em informação. Há entidades que se dedicam a isto, a somar dados de diferentes fontes. Conseguem chegar à identificação das pessoas e ficam com muito poder", refere Ricardo Correia.
A informação pode depois ser usada contra aqueles que viram os seus dados expostos. Um dos riscos mais falados é o das seguradoras ficarem a conhecer detalhes clínicos dos clientes e, a partir daí, recusarem fazer seguros de vida ou de saúde ou exigirem preços demasiado elevados pelos mesmos.
Se os dados de saúde evidenciarem que alguém tem uma doença genética pode mesmo "afetar a família inteira".
Os riscos são maiores se o lesado for uma figura pública, suscetível de pressão ou chantagem. Mesmo que só se torne conhecido muitos anos depois da exposição. Porque uma vez na internet, a informação fica para sempre na internet.
Marketing direto e risco de redução de notificações
Estas bases de dados são também apetecíveis para as práticas de marketing direto, nota o professor da FMUP. Não será de estranhar que, dentro de algum tempo, aqueles pacientes cujos registos mostram que têm doenças crónicas comecem a receber publicidade dirigida à patologia.
Há outro "efeito lateral também perigoso" que resulta desta violação de dados pessoais e clínicos: "as pessoas e os profissionais de saúde podem começar a achar que é melhor não notificar reações adversas porque há risco de exposição de dados", assinala Ricardo Correia.
Tendo em conta que a farmacovigilância é fundamental para garantir a segurança dos medicamentos, o especialista em Informática Médica entende que "o Infarmed e a EMA devem rapidamente dar uma prova de confiança ao sistema e explicar a forma como os dados são processados".
Quebra de confiança nos sistemas de proteção
Para Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, a divulgação dos dados clínicos de milhões de europeus, incluindo portugueses, "é uma notícia triste" porque há "uma quebra de confiança nos sistemas eletrónicos de reporte destas reações adversas".
O médico entende que seria importante que as autoridades pudessem dizer que o problema já está resolvido porque os auto -reportes são fundamentais para a vigilância das reações adversas, não só das vacinas mas também dos medicamentos. Apesar da quebra de confiança, Gustavo Tato Borges acredita que as pessoas que partilham esta informação, fazem-no com boa vontade, e deverão continuar a fazê-lo.