Dados clínicos de portugueses expostos ilegalmente por regulador de saúde dos EUA
Ficheiro gigante com informação suscetível de identificar doentes que tiveram reações adversas à vacina contra a covid-19 foi divulgado publicamente. A Agência Europeia do Medicamento está a investigar a violação da proteção de dados.
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Dados clínicos de milhares de doentes, incluindo portugueses, que tiveram reações adversas após a toma de vacinas covid-19 estavam até ontem expostos publicamente numa base de dados do regulador de saúde norte-americano. A Agência Europeia do Medicamento (EMA) e o Infarmed admitem que, face ao detalhe das informações divulgadas, há "risco elevado de identificação indireta" dos pacientes. Perante a gravidade dos factos, o regulador do medicamento da União Europeia pediu um "parecer urgente" ao supervisor europeu que fiscaliza a aplicação das regras de proteção dos dados pelas instituições europeias. A Comissão Nacional de Proteção de Dados também está a acompanhar o caso.
A informação sensível foi descarregada no sistema de farmacovigilância de vacinas americano (VAERS), tornando-se acessível a partir dos sites da FDA (Food and Drug Administration, o regulador do medicamento americano) e do CDC (Centers of Diseases Control and Prevention).
O ficheiro, com cerca de 17 terabytes, contém informações de doentes portugueses (crianças, jovens e adultos) que tiveram reações adversas a vacinas, mas também de outros cidadãos europeus.
O nome dos utentes não está exposto, mas a informação é pormenorizada. Há identificação da idade, género, peso, altura, história clínica, medicamentos que o utente estava a tomar, datas de acontecimentos relevantes (como a toma da vacina, internamento, alta, morte), descrição do episódio clínico e das medidas terapêuticas, evolução do paciente, bem como o país onde se deu a reação adversa.
Este nível de detalhe de dados pessoais não pode ser divulgado à luz da legislação europeia, confirmaram, ao JN, o Infarmed, a Comissão Nacional de Proteção de Dados e uma advogada especialista em privacidade, proteção de dados e segurança da informação. A transmissão configurará uma violação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e os infratores poderão incorrer em pesadas multas [ler nas páginas seguintes].
Ao JN, a EMA confirmou a exposição dos dados clínicos e explicou que foi avisada do sucedido pelos noruegueses. A agência do medicamento da Noruega estranhou que dados detalhados de reações adversas dos seus cidadãos, que tinham sido comunicados ao sistema de farmacovigilância europeu (Eudravigilance), estivessem expostos nos sites da FDA e do CDC e, consequentemente, acessíveis de qualquer parte do Mundo.
Farmacêuticas na mira
A partir daqui, a EMA informou as várias agências do medicamento europeias, incluindo o Infarmed, sobre o sucedido e deu conta das investigações em curso. As primeiras conclusões apontam no sentido de ter sido uma ou mais farmacêuticas que desenvolveram as vacinas a partilhar indevidamente a informação.
"As investigações iniciais encetadas pela Agência Europeia permitiram concluir que estes dados terão sido transmitidos por titulares de autorização de introdução no mercado à FDA, no âmbito dos requisitos de farmacovigilância da agência norte-americana", referiu o Infarmed ao JN. Refira-se que os titulares de autorização de introdução no mercado (TAIM) são, no caso das vacinas covid-19, as empresas que as produziram.
Não é claro que estejam em causa reações adversas apenas às vacinas covid-19 ou se a informação divulgada também abrange episódios com outras vacinas. Os dados clínicos sensíveis de crianças e adultos portugueses foram divulgados online pelo grupo "Pelas crianças e jovens na pandemia", que apresentou recentemente uma queixa à Procuradoria-Geral da República [ler ao lado].
Em resposta ao JN, a agência europeia do medicamento adiantou que está "em contacto com a FDA" para tentar resolver o problema, alegando que a proteção dos dados pessoais é uma das maiores preocupações da EMA, da Comissão Europeia e dos estados-membros.
Tanto a EMA como o Infarmed referiram que já foi solicitado um "parecer urgente" ao supervisor europeu de proteção de dados (European Data Protection Supervisor ) para "obter orientações quanto à interpretação correta da legislação de proteção de dados nesta situação intercontinental".
Movimento usa dados para queixa à PGR
Os dados clínicos de crianças e adultos portugueses com reações adversas à vacina covid-19, divulgados nos Estados Unidos, servem de base a uma participação à Procuradoria-Geral da República (PGR) feita pelo movimento "Pelas crianças e jovens na Pandemia". O grupo tem desencadeado diversas ações (cartas abertas, providência cautelar e uma ação popular) contra a vacinação covid-19 de crianças e jovens. Na exposição, enviada à PGR no dia 12, acusam o Infarmed e a EMA de falhas na regulação, supervisão e fiscalização das vacinas.