O número de pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal tem vindo a aumentar. A maioria das associações oferece apoios na alimentação, no entanto, o projeto “É Um Restaurante” tem como objetivo mudar as suas vidas e, simultaneamente, deixar a marca através do paladar.
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À primeira vista, parece um restaurante de comida típica portuguesa comum, com um ambiente acolhedor e decoração cosmopolita. No entanto, o pequeno estabelecimento situado no número 56 da Rua de S. José, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa, tem uma particularidade: foi criado para empregar pessoas em situação de sem-abrigo e integrá-las no mundo do trabalho, proporcionando formação e experiência. O menu, confecionado pelo chef Nuno Bergonse, inclui pratos tradicionais diversificados e uma ótima seleção de vinhos e cocktails.
As paredes, pintadas de branco, estão decoradas por espelhos, onde é exibido o menu. Saltam ao paladar entradas, pratos principais, sobremesas e sugestões de vinhos. Candeeiros suspensos de design simples proporcionam uma luz aconchegante ao local. As mesas rústicas de madeira, com toalhas de tecido e um conjunto completo de talheres, copos e pratos, demonstram estar prontas para receber os clientes. Os assentos, que variam entre confortáveis sofás acolchoados e cadeiras de madeira, tornam impossível não aceitar o convite para sentar e desfrutar da experiência gastronómica que o restaurante tem para oferecer.
A ideia de integrar sem-abrigo num espaço como este partiu da Associação Crescer, cuja missão é, desde 2001, promover a inclusão de pessoas em situação de maior vulnerabilidade e exclusão. Como explica Carolina Vinhas, psicóloga nesta entidade, “este projeto nasceu da necessidade de arranjar respostas relacionadas com a empregabilidade para pessoas que estão ou estiveram em situação de sem-abrigo. O estigma que existe em torno destas pessoas torna complicado arranjarem trabalho”.
Esta história de sucesso começa quando Américo Nave, diretor executivo e um dos fundadores da Crescer, foi desafiado a criar uma solução para a alimentação de pessoas em situação de rua que não tivessem apoio alimentar na zona de Lisboa, ou seja, um sítio onde fosse possível cozinhar e distribuir comida aos mais necessitados. O responsável sempre acreditou que seria mais importante empoderar estas pessoas, que, muitas vezes, têm todas as competências necessárias para trabalhar, mas não a oportunidade. Em conjunto com a Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), a Crescer lançou as sementes à terra.
Uma segunda oportunidade
Entregue às tarefas na cozinha e munido de avental, Luís, que prefere não revelar o verdadeiro nome, foi uma das pessoas que agarrou esta oportunidade. A viver nas ruas há anos, procurou ajuda junto da Crescer, na Reboleira, bem como na Comunidade Vida e Paz, em Alvalade. Através da associação, teve conhecimento da iniciativa. Como não tinha rendimentos, decidiu arriscar e tentar dar uma reviravolta à vida. “Antes de ter sido acolhido pela Crescer, estava a dormir no albergue de São Bento”, recorda. “Tinha de me levantar às sete horas da manhã diariamente e ficar na rua das oito horas da manhã até às seis horas da tarde. Não conseguia descansar o suficiente”, conta.
Neste momento, Luís vive num apartamento da Crescer, pertencente à Unidade de Emprego e Autonomia. As pessoas que lá residem estão ou estiveram em situação de sem-abrigo e encontram-se a trabalhar ou em formação. “Sinto-me bastante satisfeito com o projeto e pretendo terminá-lo para conseguir inserir-me no mercado de trabalho”, revela. Luís sabe que já não é novo e o tempo não perdoa, mas nunca é tarde para agarrar a vida: “Como já tenho 62 anos, é muito importante trabalhar nestes últimos quatro anos para ter direito a uma reforma, mas se não conseguir, talvez continue a trabalhar até aos 70 anos.”
Das ruas para o restaurante
A missão de encontrar participantes para o projeto começa com um e-mail enviado pela Associação Crescer para todos os parceiros e associações que trabalham com pessoas que estão ou estiveram em situação de sem-abrigo. Essas mesmas entidades encontram
pessoas que têm interesse em fazer parte da iniciativa. Segue-se a fase das entrevistas e avaliações para confirmar se estão preparados para se comprometerem com o desafio.
Após a seleção dos membros do projeto, dá-se início à formação teórico-prática no primeiro mês, em que trabalham soft skills, como a comunicação e o trabalho em equipa. De seguida, são ensinados hábitos de higiene importantes para trabalhar na restauração, bem como a segurança no trabalho, a cozinha tradicional portuguesa e a pastelaria. Ao fim de cinco semanas de formação teórica, os participantes aplicam o que aprenderam nos restaurantes que integram o projeto, sempre acompanhados pelos chefes de cozinha.
Além de assegurar a formação teórico-prática dos participantes no projeto “É Um Restaurante”, a associação Crescer sabe que o aspeto físico é algo importante para trabalhar no atendimento ao público. As pessoas que se encontram em situações vulneráveis não têm meios para cuidar da aparência. Por isso, a associação oferece-lhes também apoio a esse nível. “Através do projeto conseguem ter o dentista com acesso a próteses e a tratamento de cáries”, refere Carolina Vinhas. Esta ajuda contribui para que a imagem destas pessoas não seja um impedimento na entrada no mercado de trabalho.
Ajuda, precisa-se
Carolina Vinhas refere que uma das maiores dificuldades da iniciativa é assegurar a parte habitacional, que também é um dos pontos fulcrais para a formação acontecer da melhor maneira. “As pessoas precisam de ter um sítio para descansar. Ninguém consegue trabalhar sem descansar. Como são pessoas que estão a criar uma rotina, necessitam desse descanso para a sedimentar. Arranjar vagas em albergues tem sido uma grande dificuldade, assim como em apartamentos partilhados ou em apartamentos de transição”, avança.
É graças à ajuda de cada vez mais voluntários que a Crescer está a transformar vidas. Nunca existem mãos a mais, quando se trata de ajudar o próximo. “Seja para arrumar o armazém ou a pintura de espaços associados à Crescer, as pessoas são sempre bem-vindas”, assegura a psicóloga. Carolina Vinhas garante que, na Crescer, todos os saberes são prestáveis: “Se têm jeito para arranjar cabelo, podem dizê-lo e ir à Crescer
cortar o cabelo de quem precisar, ajudando assim na melhoria do aspeto físico dos participantes.” Carolina Vinhas revela que até já tiveram o voluntariado de uma massagista.
Fazer parte do projeto “É Um Restaurante” ensinou Carolina Vinhas a dar valor às pequenas coisas: “aos toques, sorrisos, a tudo”. A psicóloga refere que aprendeu a ser grata pelas coisas que tem e que, muitas vezes, toma por garantidas, ao mesmo tempo que partilha, com lágrimas nos olhos, o comentário marcante de um participante: “Graças à Crescer, disse que já não tinha vergonha de sorrir. Antes da ajuda da associação, a senhora não tinha dentes, mas a Crescer deu-lhe um novo sorriso e ajudou-a a ganhar de volta a confiança.” A terapeuta frisa ainda que são todos bem-vindos no “É Um Restaurante”, e que ao frequentá-lo está inevitavelmente a ajudar esta causa.
Hoje, Luís reconhece o impacto profundo que a Crescer teve no seu percurso de vida e conta, sentado à mesa do restaurante em que atualmente trabalha, com um tom de satisfação e felicidade, a sua atual rotina em busca de uma vida melhor.
*Clara Lam Cristóvão é estudante do 2º ano de licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). O gosto por conhecer diferentes culturas e explorar novos lugares levou-a a voluntariar-se durante um mês e meio, na Geórgia, onde planeou atividades para crianças. Sempre sentiu curiosidade sobre o mundo e apetência pela escrita. A opção por Jornalismo pareceu-lhe o caminho mais seguro para juntar as duas valências.
Daniela Santos é estudante do 2° ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Desde que criança que sente uma enorme paixão pela leitura e pela escrita.
Devido ao seu interesse por questões sociais, no futuro como jornalista, pretende abordar assuntos que possam contribuir para melhorar a vida das pessoas e ajudá-las a percecionar outras realidades.
Sara Rafael é estudante do 2.º ano da licenciatura em Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL).
No 1ºciclo, integrou o clube de jornalismo da escola, experiência que lhe despertou o interesse pela profissão e a levou a decidir que queria ser jornalista. Movida pela convicção de que o acesso à informação e ao conhecimento é um direito fundamental, escolheu seguir esta área com o objetivo de contribuir para uma sociedade mais informada e consciente.