Debates acalorados deram lugar à nova Constituição após as primeiras eleições livres
O sufrágio que deu lugar à Assembleia Constituinte foi há 50 anos. Antigos deputados lembram ao JN os desafios.
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Há precisamente 50 anos, os portugueses formaram longas filas para as primeiras eleições livres, um ano após a Revolução dos Cravos de 1974. Mas não desistiram de esperar. Numa afluência esmagadora de quase 92%, escolheram os 250 eleitos à Assembleia Constituinte, que iniciou os trabalhos a 2 de junho de 1975. Meio século depois daquele inédito sufrágio direto e universal, os deputados de então, como Manuel Alegre, Jerónimo de Sousa, Ângelo Correia e Basílio Horta, recordam ao JN as conversas acaloradas e o empenho que permitiu aprovar a Constituição em dez meses.
Para o socialista Manuel Alegre, “a primeira vitória foi realizar as eleições para a Assembleia Constituinte”. Foi um “momento decisivo da construção da democracia em Portugal, cumprindo a promessa dos capitães de Abril”, recordou ao JN. Depois, “apesar dos boicotes, do cerco e dos tumultos, os deputados foram fazendo o seu trabalho com a Constituição”. Cumpriram o mandato de um ano que tinham para esta missão, que abriu caminho a sucessivas revisões.
“Instituíram a legalidade democrática, até aí só existia a legalidade revolucionária”, destacou. Em suma, “criaram o Estado de Direito Democrático, lançaram os princípios básicos fundamentais do Estado Social e construíram uma democracia moderna, aberta e progressista”.
Sobre a convivência na Assembleia, após as eleições que deram maioria aos partidos do centro (PS de Mário Soares que saiu vitorioso e PPD de Sá Carneiro), Alegre disse que, apesar do clima social e político tenso, foi possível, com participação de todos os partidos, criar a Constituição que substituiu a do Estado Novo.
“Violência” nas palavras
Ângelo Correia, ex-ministro do PSD e deputado da Constituinte, recordou ao JN que tinha 29 anos na altura. Era dos mais novos da Assembleia. E teve um sentimento de “pequenez”. Era “a primeira vez que via pessoalmente” figuras como Mário Soares, Salgado Zenha, Manuel Alegre ou Álvaro Cunhal. “Senti-me pequenino perante eles. Tinham uma história democrática que eu não tinha” e que incluía “exílio, perseguição e prisão”. Olhava para eles com “reverência”.
Falou depois do “Verão Quente” e da “projeção na Assembleia do sentimento que trespassava o país, ou seja, a bipolarização que se acentuava entre liberdade e democracia de um lado, e uma ideia ditatorial e autocrática do outro”. “Assisti a debates com alguma violência verbal”, destacou ao JN. Ângelo Correia lembrou ainda outros momentos que viveu como o cerco à Constituinte e o 25 de Novembro.
Quanto à Lei Fundamental, nota que “foi preciso haver a revisão de 1982 para se promulgar uma nova Constituição que já tinha uma amplitude democrática muito maior”. Mas “não suficiente ainda para entrarmos na Europa, o que levou a que, em 1989, tivéssemos de a rever”.
“Não sou doutor”
Jerónimo de Sousa recordou ao JN que a Constituição foi aprovada no ano seguinte às eleições de 1975, em votação final global “por uma esmagadora maioria dos deputados”. Mas, antes, partilhou uma memória carregada de simbolismo. “Da entrada na Constituinte como deputado eleito, lembro-me de um velho contínuo da antiga Assembleia Nacional que pediu que assinasse documentos necessários para a tomada de posse. ‘Muito obrigado, senhor doutor’. ‘Não sou doutor!’, respondi eu. ‘Peço desculpa, senhor engenheiro!’ Este simples diálogo encerra em si próprio a mudança que representou aquela eleição”, afirmou ao JN.
Do período antes das eleições, o ex-líder do PCP recorda o “elevadíssimo grau de mobilização” da classe dos metalúrgicos, “na medida em que o MFA tomava posições nos quartéis e nas ruas”.
Também Basílio Horta, autarca de Sintra eleito pelo PS, lembra a formação da Assembleia Constituinte. O antigo deputado do CDS nota que “foi um marco histórico de extrema importância para Portugal. O país ansiava por liberdade, justiça e democracia”.
“Em 1975, foi eleita com o objetivo de redigir uma nova Constituição que refletisse os valores e aspirações do povo português”, sublinhou ao JN. E, como membro daquela Assembleia, sentiu “um profundo sentido de responsabilidade e compromisso com a construção de um Portugal mais justo e democrático”. “Cada debate era carregado de paixão e determinação. Lembro-me das noites longas, das conversas acaloradas e do sentimento de união que nos movia. Estávamos todos imbuídos de um propósito maior: criar um documento que fosse um verdadeiro reflexo da vontade popular”, recordou.