Internamentos são "muito traumatizantes" e provocam alterações cognitivas, pesadelos, fadiga e fraqueza muscular. Recuperação pode levar meses.
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Agarrado a um andarilho, com a ajuda do terapeuta, arrasta primeiro um pé e depois outro. Sorri. Os braços conduzem aquele corpo flácido, que esteve prostrado sobre uma cama mais de duzentos dias. O simbolismo do momento não passa despercebido. Desde 26 de março, quando entrou no Hospital de Braga infetado com covid-19, que António Rodrigues trava uma guerra. Primeiro com o vírus, depois com as sequelas e complicações de um internamento muito prolongado. Precisamente oito meses depois, já no Centro de Reabilitação do Norte (CRN), em Gaia, António levantou-se e voltou a dar os primeiros passos.
Diabético, hipertenso, obeso, reunia fatores de risco suficientes para que a infeção levasse a melhor. Não sabe onde contraiu o vírus e já nem quer saber, "foi há tanto tempo...". Dois dias depois de ser internado em Braga, o mundo apagou-se durante quase um mês. Dizem-lhe que esteve nos cuidados intensivos, de barriga para baixo, agarrado à vida por um ventilador. Não se lembra. A primeira tentativa para tirar o suporte ventilatório falhou. À segunda, acordou de sobressalto e esteve quinze dias mergulhado numa confusão de pensamentos, de pesadelos e de humores que ainda hoje o sobressaltam. "Tratei mal toda a gente à minha volta - os médicos, os enfermeiros, coitados - mas depois a cabeça melhorou", conta, encolhendo os ombros, como quem pede desculpa.
CRN já recebeu 29 doentes
As alterações cognitivas nomeadamente da atenção, da orientação temporal e espacial, da memória e da velocidade de raciocínio são frequentes após uma estadia prolongada em cuidados intensivos e não exclusivas de doentes graves covid, explica Ana Lima, médica fisiatra e coordenadora da Unidade de Reabilitação Geral de Adultos do CRN. É ali que se trabalha a recuperação física dos doentes com sequelas pós-covid, referenciados por vários hospitais da região. Desde o início da pandemia já por lá passaram 29 doentes, dos quais 11 ainda estavam internados no final de novembro.
Sobre os doentes covid em específico, a médica realça que "os internamentos são muito traumatizantes" e provocam "alterações emocionais muito severas, quase como um stress pós-traumático". Acordar numa unidade de cuidados intensivos, sem saber onde se está, quantos dias passaram, se é dia ou noite, com pessoas cobertas dos pés à cabeça pelos equipamentos de proteção individual, e sem ver a família, pode ser um pesadelo sem fim. "Chegámos a ter um doente que tinha medo de adormecer", recorda Ana Lima.
O stress pós-traumático e a fadiga - que afeta mesmo os doentes ligeiros ou assintomáticos até meses depois da doença - são traços comuns da covid-19, atesta o médico Rui Santos, coordenador do Núcleo de Reabilitação Cardiorrespiratória do CRN. As alterações da deglutição e da voz, a fraqueza muscular e a fraca tolerância aos esforços são outras sequelas frequentes em doentes que passaram por cuidados intensivos.
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Menos 36 quilos e pernas moles
Em oito meses, António Rodrigues, 53 anos, perdeu 36 quilos. Os músculos tornaram-se "moles como papa", os pés deixaram de mexer e as pernas agora magras perderam força e energia. No ombro tem uma lesão, que terá resultado das manobras durante o internamento, explica o terapeuta, e a mão direita perdeu funcionalidade. No meio de tudo isto tem uma enorme força de vontade. Quer voltar a trabalhar na escola onde é assistente operacional há 26 anos, quer voltar a fazer as suas caminhadas diárias, quer estar com a família, a mulher e os filhos, que não vê desde março.
"Vou continuar a lutar", garante. Foi isso, aliás, que lhe pediram os antigos alunos da escola, agora médicos e enfermeiros no Hospital de Braga, quando o visitaram. A memória trava-lhe a voz. As lágrimas deslizam e escondem-se por trás da máscara. "Eles disseram-me o que sempre lhes disse: lutem para conseguirem o que querem".
Ao fundo do ginásio, sentada numa cadeira de rodas, Laurinda Sousa, 70 anos, aguarda o próximo exercício. Quando foi transferida do Hospital de Gaia no passado dia 10, "só dava uns passinhos" com ajuda e cansava-se logo. A covid-19 roubou-lhe quase tudo. Esteve um mês internada em Gaia, quinze dias nos intensivos. Quando acordou sentiu-se abandonada, não sabia da família e "nem numa colher conseguia pegar".
No Centro de Reabilitação do Norte está sempre ocupada e a terapeuta diz que "está a evoluir muito bem". Está a recuperar força muscular, a trabalhar a tolerância ao esforço, a melhorar o equilíbrio e a treinar a marcha para regressar ao domicílio com autonomia. Voltar a casa é tudo o que Laurinda quer. "O afastamento da família tem sido a maior dor", diz, sem hesitações. Viu o marido quando foi transferida, e a filha, só uma vez através de um vidro. Tem mais um filho e quatro netos e as saudades são imensas.
Deitada, enquanto empurra a bola vermelha com as pernas, para trás e para a frente, Laurinda fala do milagre de estar viva. E pede "a todos que levem isto muito a sério"e "se tiverem sintomas procurem ajuda, não deixem andar".
Do outro lado do rio, no Hospital de S. João, no Porto, Mário Sobral já faz a recuperação física em regime de ambulatório. Teve alta no dia anterior, depois de quase um mês internado. Passou nos cuidados intensivos, mas não precisou de ventilação. Porém, sofreu uma complicação decorrente do longo período que esteve deitado. O sangue coagulou nas artérias e provocou-lhe uma embolia pulmonar. Foi o momento mais crítico. "Não conseguia respirar, senti-me a morrer, mas salvaram-me", conta Mário, 66 anos, rasgando elogios aos profissionais de saúde que o acompanharam, tanto na UCI como no internamento. Ao contrário de António, Mário sabe onde se cruzou com o vírus. Foi num almoço de família, dias antes da filha dar à luz. E no dia em que o bebé nasceu, o avô dava entrada no S. João, já muito debilitado.
As dificuldades respiratórias e a falta de força foram uma constante no internamento de Mário. Só deixou o oxigénio na véspera da alta. "A equipa entrou e disseram: é oficial, o oxigénio acabou", recorda, sorrindo. O dia seguinte foi "inesquecível". Voltou para casa, conheceu o novo membro da família e teve direito a um pedido especial: "ovos mexidos com bacon ao lanche", ri-se. Mário não conhece Laurinda, mas a conversa termina da mesma forma, com conselhos para quem está de fora. "Sigam as orientações e se tiverem de ir ao hospital, vão o quanto antes".
Experiência reduz sequelas
Pelo Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do S. João passaram, na primeira fase da pandemia, 190 doentes pós-covid. Agora, acolhe cerca de 35, apesar do hospital estar novamente muito pressionado. "Isto não está provado cientificamente, mas parece que a experiência adquirida está a resultar em melhores tratamentos e menos sequelas", compara João Barroso, diretor do serviço. Ainda assim, "em regra, quase todos os que vão para a UCI acabam por precisar de reabilitação física". Para o tempo de recuperação há muitas variáveis em cima da mesa. As doenças prévias, sobretudo cardíacas e respiratórias, a forma física dos doentes antes de adoecerem, o tipo de terapêuticas a que foram sujeitos, o tempo do internamento.
Orlando Miranda, 73 anos, acaba de descer ao ginásio. É a primeira vez e as dificuldades são notórias. Um simples levantar de pernas e a máquina que mede os níveis de oxigénio já está a dar sinal. "Tem a saturação muito baixa, não pode fazer grande coisa", nota o terapeuta. Falar também é um esforço, mas Orlando faz questão de deixar o seu testemunho: "Tem sido um enorme sofrimento, não desejo isto a ninguém".
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