Deslocações de deputados custaram à Assembleia da República mais de 1,3 milhões de euros, em 2018. Parlamentares têm "lucro" com o abono.
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No ano passado, a Assembleia da República gastou mais de 1,3 milhões de euros com o abono de deslocação à residência dos deputados, o que dá uma média de 6156 euros por cada um, se dividirmos o valor pelos 213 parlamentares que usufruíram deste subsídio. Este ano, o valor já vai em 803 mil euros, o que significa que, até julho, os deputados terão recebido em média 3773 euros para as viagens semanais até casa. Mas aquele que é mais um de vários apoios transformou-se num abono que está a dar "lucro" a muitos deputados.
Como o regulamento da atribuição deste subsídio só prevê o pagamento calculado ao quilómetro (0,36 cêntimos) entre o Parlamento e a sua residência, numa deslocação terrestre por carro particular, quem opta pelos transportes públicos acaba muitas vezes por ser beneficiado.
Exemplificando: um eleito pelo Porto recebe, em média, 108 euros pelos cerca de 300 km percorridos, mas de comboio o bilhete custa 31,20 euros no Alfa e 19 euros na Rede Expressos. O montante varia consoante a deslocação e podem acrescer custos adicionais, como táxis.
A verdade é que a maioria dos deputados dos círculos fora de Lisboa - principalmente os de Aveiro, Coimbra, Porto, Braga ou Viana do Castelo - deslocam-se de comboio ou autocarro, o que lhes permite um encaixe que pode chegar aos 100 euros por viagem, entre o que recebem para uso do carro particular e o preço do transporte público.
Esta modalidade mantém-se há muitos anos e a recente alteração das regras - para responder às exigências de um relatório crítico do Tribunal de Contas (TdC) ao modo de atribuição de subsídios e também às polémicas com a questão da declaração das moradas - voltou a não apertar a malha. À exceção do PS, os partidos admitem mexer no regulamento na próxima legislatura.
Transversal às bancadas
O abono cobre a distância entre a residência declarada no início de cada sessão legislativa e a Assembleia da República, que consiste no pagamento de 0,36 cêntimos por quilómetro, com base num único pressuposto: o carro particular.
Só que basta estar atento aos comboios que saem de Lisboa à sexta-feira à tarde para ver o meio de deslocação usado pela maioria dos deputados de todas as cores partidárias. Um deputado do PS confessou, ao JN, que "chegam a ir 10 ou 15 deputados juntos num mesmo comboio".
O Parlamento é relativamente generoso a dar estes apoios
Ao JN, a Secretaria-geral do Parlamento disse que o abono é atribuído a 213 deputados, "não tendo por referência os transportes públicos". Este ano, até julho, em média, cada um destes parlamentares encaixou 3373 euros deste abono. E assim se irá manter, tendo em conta que o novo regulamento, aprovado há uma semana, nada mudou.
Para João Paulo Batalha, presidente da associação cívica Integridade e Transparência, responsável pelo ranking nacional da corrupção, "não se está perante um abono mas um complemento salarial. Aliás, o Parlamento é relativamente generoso a dar estes apoios".
"O aproveitamento deste abono em concreto não tem nada de errado, desde que seja assumido. O sistema deveria ser claro, com um protocolo suportado por pagamentos de despesas contra fatura ou mapa de quilómetros do carro. Mas tudo depende de quanto os deputados querem fazer uma coisa pensada ou atabalhoada sobre as regras que os devem reger".
Partidos falam de prazos
Segundo Pedro Delgado Alves, do PS, que esteve envolvido na negociação do novo regulamento, que teve por base uma proposta do socialista Jorge Lacão - que o JN tentou ouvir sem sucesso -,"há uma regra geral para o cálculo de transporte terrestre que é a mesma de toda a Administração Pública". "Não se mudou a regra porque é a mesma", explicou.
Contudo, à Direita e à Esquerda considera-se que não se foi longe o suficiente no regulamento que entra em vigor na próxima legislatura, tendo em conta o pouco tempo para se fazerem alterações mais profundas.
"O que se alcançou foi o denominador comum e o mínimo que pudesse responder ao Tribunal de Contas e à questão dos denominados deputados-paraquedistas. Esta é a solução possível e não a desejável", admitiu o social-democrata António Leitão Amaro, que defendeu que "se deveria ter ido mais longe".
Nisso acredita o centrista António Carlos Monteiro: "pelo CDS, deveríamos mexer no sistema todo". "Não foi essa a vontade maioritária. Pelo CDS, que graças a Deus não teve nenhum deputado envolvido nas polémicas das moradas, este assunto deverá ser alvo de discussão na próxima legislatura", afiançou.
Do lado do BE, também se admite voltar ao assunto. "Existia da nossa parte vontade de rever de forma mais profunda a atribuição deste e doutros abonos. O que foi conseguido, não era o que desejávamos", criticou o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares.
Perguntas e respostas
A que abonos têm direito os deputados?
A um abono de ajuda de custo em cada dia de trabalhos parlamentares: 69,19 euros/dia para quem vive fora de Lisboa e de 23,05 euros/dia para quem vive em Lisboa e em dez concelhos em redor da capital. E a um abono para viagens de ida e volta, entre a residência e a AR: 0,36 cêntimos/km, no continente, a que acresce uma viagem para os deputados insulares e eleitos pelos círculos da Europa e Resto do Mundo.
Há mais abonos?
Sim. Os mesmos abonos anteriores aplicam-se aos dias de trabalho político - por norma, as segundas-feiras. Aos deputados que foram eleitos em círculos onde não residem - os denominados páraquedistas - ainda são dadas ajudas de custo de 69,19 euros por dia [num máximo de dois por semana].
Como é que é feito o controlo?
Não há, à exceção do controlo da assiduidade. Só é tida em conta a informação dada pelos deputados no início da legislatura e de cada sessão legislativa.
Novas regras
Dividir carro pessoal
A alteração ao regulamento de 2004, aprovado há uma semana, estabelece que, se um deputado der boleia a um ou mais colegas, todos terão de dividir o subsídio ao transporte terrestre, mas só na próxima legislatura.
Viagens para as ilhas
Após a polémica com as viagens dos parlamentares insulares [que têm a passagem paga pelo Parlamento e pediam o reembolso da viagem através do subsídio de insularidade para os residentes das ilhas], o Parlamento decidiu que as viagens serão adquiridas pelos serviços e o abono de deslocação é ajustado trimestralmente, sem direito a outros subsídios.
Polémicas
Feliciano B. Duarte
Durante anos, o deputado do PSD deu como morada de residência o Bombarral, vivendo em Lisboa. O caso, revelado há um ano, levou à alteração das regras da morada declarada aos serviços parlamentares.
Paulino Ascenção
O bloquista saiu há um ano, por ser um dos envolvidos no abuso do subsídio aos eleitos insulares. Entregou depois o dinheiro das viagens (5000 euros) a uma associação de que faz parte na Madeira.