Entre o Alentejo e o Algarve, está a serra do Caldeirão. Não é muito alta, mas é muito ondulada. Aquilo que os ciclistas chamam "quebra-pernas". A parte de ouro dos meus 125 km de ontem, entre Aljustrel e Faro.
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Abeirando-me do final da N2, achei que me deveria declarar. Andava apaixonado pela estrada, tanto quanto paralisado pela timidez. Tinha de lhe dizer. E esta era a última serra. Se não falasse, calar-me-ia para sempre.
Pela zona do Ameixial, ensaiei a primeira tentativa. Falei-lhe da beleza das suas linhas, da forma graciosa como se encaixa nos montes e vales, fintando as árvores e brincando com a distância e o desnível de forma quase matemática. Não recebi grande reação. Amuei.
Ao quilómetro 700, parei para uma foto junto ao marco que o assinala. Estava mesmo feliz por estar ali e celebrei isso com os dois amigos que nesta etapa se juntaram a mim. Retomada a marcha, a estrada resolve dar-me troco e sussurra-me, em tom doce, "pessoas". Como? "O que importa são as histórias das pessoas que sobre mim viajaram", segreda-me.
Fiquei sem discurso. Pouco convencido. Os meus piropos sobre as suas curvas não valeram de nada. Amuei de novo.
Chegamos, eu, a bicicleta e a estrada, a São Brás de Alportel e o presidente da Câmara leva-me a ver o que há de ser um centro interpretativo da N2. Descobriram um edifício com espólio intocado alusivo à estrada. Livros de cantoneiros, ferramentas, documentos da Junta Autónoma das Estradas, muitos pedaços de história. No meio, um livro de louvores. Na primeira página, é louvado um cantoneiro que encontrou na estrada uma mala com joias, ouro e dinheiro, tudo no valor de 150 contos, e que a entregou para devolução ao legítimo dono. Louvor lavrado à mão, como tantos outros naquele livro, por uma pessoa que registou o gesto ímpar de outra pessoa. Em 75 anos de N2, quantas terão sido as histórias de pessoas?
Até Faro, foi sempre a descer. A proximidade do mar pendurou sorrisos na cara dos meus colegas. Eu também ia feliz. Mantive os olhos na estrada, beijando-a com o olhar. Aproximava-se a despedida e, sim, ela tinha razão. As pessoas são quem mais conta.