A covid-19 mudou a nossa vida. Não sabemos se para sempre. Sabemos, sim, que, mesmo tendo sido declarada há apenas dois meses, a pandemia nos parece uma eternidade. Porque nunca houve um acontecimento na História que fosse capaz de parar o Mundo de forma tão repentina. A guerra está longe de ser ganha.
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Seja como for, o confinamento produziu resultados, em Portugal e no Mundo. E ensinou-nos, por arrasto, o que devemos fazer e o que não devemos repetir. Tirámos várias lições. Da importância da ciência, à necessidade de robustez dos serviços públicos de saúde, passando pelos dilemas associados às liberdades individuais, terminando nas formas de ensinar e trabalhar à distância e nos desafios que uma crise económica sem precedentes trará às relações laborais e pessoais. Este é um texto em atualização.
1 - Exaurido, SNS sobreviveu ao embate
Unanimemente eleito a maior conquista da democracia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido, ao longo dos tempos, objeto de acirradas discussões. Enfrenta hoje o mais exigente desafio nos seus 41 anos de existência. E, até agora, parece levar vantagem nesta guerra contra o inimigo invisível. "Deu uma resposta muito satisfatória. E a prova mais cabal disso é o facto de os profissionais de saúde nunca terem tido que escolher que doente tinha acesso ou não ao ventilador ou aos cuidados intensivos", defende Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.
Se é certo que há países que não podem dizer o mesmo, também é verdade que outros houve com resultados mais positivos. E que, segundo Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, revelaram "uma maior coordenação na compra de equipamentos de proteção individual, testes e ventiladores, evitando que cada instituição recorresse, de forma individual, a um mercado limitado e concorrido, provocando a inflação de preços". Devemos também avaliar, acrescenta, a estratégia no diagnóstico, no fundo "o papel do Estado na salvaguarda dos interesses do SNS", já que a maior parte dos testes realizou-se no setor privado, dada a falta de capacidade de muitos hospitais para o fazer. E ainda devemos refletir se "a quebra da atividade hospitalar de forma abrupta", para se centrar quase em exclusivo no combate à covid-19, "não deveria ter sido feita de forma mais gradual".
"Numa futura pandemia, é importante uma estratégia que permita cuidar dos dois tipos de doentes, porque as doenças víricas são o futuro, são elas que vão trazer pandemias e perturbações no sistema de saúde", sublinha Miguel Guimarães. E isso só será possível "se reforçarmos a capacidade de resposta do SNS". Será esta uma lição para que os futuros governos pensem duas vezes quando cortarem no orçamento para o setor? Na verdade, "a importância da saúde vê-se nestes momentos, em que uma pandemia provocada por um vírus minúsculo causa uma perturbação em todo o Mundo".
2 - Articular o central e o local
Para vencer o vírus também precisamos de quem nos proteja dele. A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) avançou para o terreno, as respostas foram várias, mas poderiam ter tido outra eficácia. "É preciso revisitar a organização territorial do sistema de Proteção Civil e isso está de alguma forma refletido quando o Governo nomeia cinco secretários de Estado para atribuir a cada um uma responsabilidade de coordenação política ao nível das cinco regiões", afirma Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil, para quem isso é a prova de que, "depois de extinta a figura do governador civil, nunca mais foi possível concertar uma medida que garantisse a adequada articulação entre o nível central e o nível municipal".
No domínio da logística, o país tem reservas estratégicas de sangue e dos seus derivados, combustíveis e medicamentos, mas cada um com os seus instrumentos jurídicos e entidades próprias, o que significa, sublinha, que o país carece de "uma reserva estratégica nacional gerida de forma integrada". E também lhe falta "um sistema nacional de planeamento civil de emergência, já previsto na alteração da lei orgânica da ANEPC, e que "deve ser o elemento agregador e congregador dos diversos subsistemas que integram a resposta a uma emergência".
3 - Proteção versus direitos
Para nos protegermos, fomos obrigados a renunciar a alguns dos nossos direitos. Mas até que ponto estamos dispostos a abdicar deles em nome da nossa segurança e da saúde pública? Um estudo da Deco indica que mais de 75% dos portugueses sentem-se confortáveis com a utilização de uma aplicação que emita alertas ao entrarem numa área com infetados ou após o contacto com eles.
E até que ponto será tolerável utilizar esses dados em defesa da saúde pública e preservando o anonimato das pessoas? As implicações são "extremamente complexas", diz o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos. "Se a circulação de pessoas infetadas for pública e controlável através das "apps", vai gerar um enorme alarme social e equívocos e, com ou sem razão, pode suscitar reações de discriminação e de agressão".
Estamos perante uma ofensiva que vai obrigar a "uma profunda reflexão e ponderação dos valores que estão em causa - a segurança, a saúde, a liberdade individual e o direito a proteger os dados que dizem respeito à saúde e às relações das pessoas".
Em Hong Kong e no Bahrein, por exemplo, as pessoas em quarentena recebem pulseiras eletrónicas que rastreiam os seus movimentos. Sobre os bairros da Índia voam drones equipados com câmaras. "O potencial de abuso é alto", alertou a ONU num relatório recente: "O que é justificado durante a pandemia pode tender a normalizar-se depois da crise passar".
4 - Confiança e ação política
É um fenómeno que exige uma forte e determinada liderança política. Hoje, é fácil constatar que a gestão do surto foi mais eficaz nos países que agiram depressa, e onde as decisões foram menos receosas e mais musculadas, como em Singapura, Taiwan ou Macau. Os que começaram por esconder e desvalorizar o surto apresentam resultados piores - é o caso dos EUA, Brasil e Reino Unido.
"A falta de coerência do discurso e de solidez das afirmações faz com que a liturgia do poder não seja cumprida, porque não é clara, sustentada e coerente. Num momento destes, não ajuda a que as populações entendam facilmente os comportamentos que devem tomar", explica o politólogo José Fontes. Ou seja, a aceitação e o cumprimento das medidas por parte da população dependem também da confiança nas instituições públicas que advém, acrescenta, "muito da credibilidade da forma como usam as informações e as sabem transmitir". E, por cá, os estudos de opinião "dão-nos a ideia de que há uma confiança forte" nas instituições": ainda há uma semana, na sondagem da Pitagórica para o JN e a TSF, o PS registava uma subida para quase 42% nas intenções de voto.
"Portugal é um caso extraordinário de estabilidade política e partidária, se compararmos com os países vizinhos. Não significa que não haja oposição, mas nesta altura temos de unir esforços porque estão em causa valores superiores, como é o da saúde e o da vida", defende Manuel Carlos Porto, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
5 - A informação como arma
A pandemia trouxe-nos um cenário desconhecido e uma quantidade infindável de informação, verdadeira e falsa, um fenómeno que a Organização Mundial da Saúde definiu como "infodemia", uma epidemia de informação, que instalou o caos e gerou dúvidas e equívocos, criando um círculo vicioso que traz insegurança. A disseminação de informação é uma constante e, numa situação como esta, urge garantir a sua qualidade e veracidade. "Este contexto pandémico mostrou claramente a necessidade de informação jornalística, de informação devidamente selecionada e contextualizada, e que é também ela uma poderosa arma de combate", observa Felisbela Lopes.
Para a professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, foi "extraordinária a capacidade de resposta do setor jornalístico em se adaptar e fazer uma comunicação diversificada, com fontes novas de informação mais pertinentes".
E com isso aprendemos todos: "Jornalistas, fontes, que perceberam uma certa hierarquia de importância, e também os cidadãos, que aprenderam que o lugar do jornalismo é insubstituível".
6 - Saúde e Ciência, os novos heróis
De repente, as atenções de todo o Mundo centraram-se na ciência. É nela que confiamos no combate à doença, a descoberta de uma vacina que a previna. Mas vivemos num mundo onde também se desconfia dela e há até quem a negue. Basta olhar para a forma como se veiculam teorias sobre esta doença, como a sua origem nas emissões 5G, como certos chefes de Estado negam a comprovada virulência, propondo mezinhas malignas, como a piada da injeção de lixívia, e receiam-se as vacinas, inventando efeitos colaterais.
"A pseudociência e as notícias falsas não vão acabar, pois a irracionalidade faz parte da natureza humana. A ignorância vai continuar a ser atrevida, como podemos ver, por exemplo, na questão das alterações climáticas globais. Oxalá, possamos aprender com a covid a atuar globalmente e que a ciência passe a ser vista com outros olhos, pelos cidadãos e pelos políticos", afirma o cientista e professor universitário Carlos Fiolhais.
É preciso entender, de uma vez por todas, o dinheiro alocado à ciência não como uma despesa, mas como um investimento na sociedade, sublinha a socióloga Maria João Valente Rosa. "A ciência não ganha valor por si, mas ganha valor aos olhos de cidadãos" que, por outro lado, hoje valorizaram ainda mais os profissionais de saúde. "Hoje vemo-los como pessoas lutadoras e de coragem que, normalmente, eram só os doentes que dela precisavam para enfrentar a doença".
7 - Saúde mental em risco
A evidência científica aponta para os diversos impactos na saúde mental, que podem atingir 25% do total de população afetada no decorrer de uma catástrofe. "Tudo indica que o impacto seja elevado e também diferenciado, porque vai depender muito do estado emocional de cada um à partida para esta crise", afirma Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos, que elege vários grupos de risco. No topo, as pessoas com grande transformação das suas condições de vida", com a perda de emprego, de habitação ou com dificuldades no acesso a bens essenciais como a alimentação.
Há estudos que estimam que 1% a 2% da população de um país pode vir a desenvolver uma perturbação, o que, no caso de Portugal, significa que possa atingir entre as 100 e as 200 mil pessoas , "além daquelas que eram as prevalências de alguns problemas, como a ansiedade e a depressão, em que já apresentava valores relativamente elevados". Ainda mais preocupante, acrescenta, é "a percentagem muitíssimo maior de pessoas afetadas, com um impacto psicológico que não é tão agudo, mas basta para causar alguns transtornos, ao nível da qualidade do sono e do aumento de fricções nas relações entre as pessoas".
Como se pode reduzir o impacto e recuperá-las rapidamente? "É o que nos preocupa mais neste momento, garantir que o Estado permita o acesso a aconselhamento e apoio psicológico ao nível dos cuidados de saúde primários às pessoas sem recursos, e sabemos que isso hoje não existe".
8 - Negócios locais
A economia mundial está a caminho de sofrer, este ano, a pior contração em quase um século. Uma das fragilidades expostas por esta crise foi a dependência do exterior. "Se as nossas economias fossem mais organizadas internamente, com os seus aparelhos de produção de riqueza e de valor mais organizados em função do bem-estar interno, provavelmente estariam agora mais fortes, como está, por exemplo, o SNS", frisa o economista José Reis.
A obsessão com as chamadas cadeias de valor global esfriou. A solução passará pelos negócios locais, ou seja, pela criação de "cadeias curtas que criam mais valor, coerência no sistema produtivo, que diversifiquem a economia e que quebrem dependências", diz o professor da Faculdade de Economia de Coimbra. Vão emergir modelos de negócio inovadores, novas oportunidades de crescimento empresarial. O uso dos meios digitais será cada vez mais massivo e transversal a todos os setores, como na saúde, com as consultas online, ao (tele)trabalho e até ao ensino (à distância).
"Este impacto da digitalização veio para ficar", diz João Cerejeira, professor de Economia na Universidade do Minho. O mercado vai pedir ainda mais profissionais das áreas da digitalização, tecnologias de informação e comunicação, gestão de cadeias de logística e transformação digital. A longo prazo, deverão crescer as engenharias mecânica, eletrotécnica e informática, se a Europa se reindustrializar e precisar de cadeias de distribuição menos dependentes do exterior.
9 - O ensino à distância como recurso
As aulas saíram da sala da escola e passaram para a sala de casa: professores e alunos deixaram de estar olhos nos olhos, percebendo as reações de uns e de outros. "Ficou claro que o ensino à distância é uma pálida imagem do ensino presencial", argumenta Nuno Crato, ex-ministro da Educação. Não é mais do que "uma solução de recurso importante, que nunca substituirá o professor, muito menos a escola", concorda Maria Emília Brederode, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE): "Pode ser um complemento interessante do ensino presencial se for utilizado como instrumento para aumentar a autonomia do aluno, ajudando-o a procurar interesse e a saber procurar informação", acrescenta.
Inevitavelmente, foi dado um passo tecnológico e, por consequência, na formação - a escola foi empurrada para a evolução tecnológica. "Estamos a apreender não só aplicações de desenho e de comunicação com os alunos, como a treinar novas plataformas de comunicação. Estamos todos a aprender", reconhece Nuno Crato.
Os pais também aprendem e parecem estar hoje a valorizar muito mais a educação, a escola e o professor. "De repente, a sala de aula tornou-se amovível, os pais deram-se conta da importância e da dificuldade do trabalho dos professores", observa a líder do Conselho Nacional de Educação.
10 - O teletrabalho e as desigualdades
O confinamento veio acelerar o processo de digitalização e massificar o teletrabalho. "Vai permitir uma relação de trabalho diferente em muitas áreas, produzir mais eficácia, reduzir as viagens, porque as reuniões vão ser feitas à distância, otimizar mais o tempo. Veio para ficar em muitas das realidades empresariais", defende António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal.
Mas também veio atacar direitos dos trabalhadores, alerta Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP. "Deixaram de ter horários" e ainda assumem a despesa com um conjunto de bens e serviços que antes eram assegurados pelas empresas - energia, comunicações, água e até os equipamentos necessários ao teletrabalho. A crise veio também expor a precariedade, que acelera o aprofundamento das desigualdades, diz Carvalho da Silva, investigador do Laboratório de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra: "Trouxe uma evidência fortíssima da centralidade do trabalho e a demonstração de que o valor dele é grande para todo o tipo de prestação, o precário não tem menos valor que os outros".
Não só se agravaram os fatores de desigualdade larvares na nossa sociedade, acrescenta Carlos Farinha Rodrigues, como "surgiram outros, nomeadamente no acesso aos serviços, à educação (limitações dos alunos a meios informáticos), e à saúde - a capacidade de resposta do SNS ficou claramente enfraquecida", ao concentrar quase toda a sua atividade no combate à covid, acrescenta o docente do ISEG.