Um caso de raquitismo e outro de AVC precoce alertam para consequências desta opção. Responsável da DGS adverte para risco de défices nutricionais. Reino Unido não recomenda.
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O veganismo - exclusão de consumo de produtos de origem animal (carne, peixe, ovos, laticínios, mel) - tem ganho seguidores em Portugal e a adoção deste regime alimentar em crianças está a suscitar intenso debate. Para a Direção-Geral da Saúde (DGS), a opção não é a mais adequada para crianças, mas é possível garantir os nutrientes necessários com acompanhamento. Posições mais céticas assumiram as autoridades de saúde do Reino Unido e da Bélgica, que não a recomendam. Em Portugal, artigos científicos relatam um caso de raquitismo em criança e um AVC num bebé.
A revista "Ata Pediátrica" descreve um caso de raquitismo numa criança de 30 meses, filha de pais vegans e que desde os cinco meses era alimentada exclusivamente com alimentos de origem vegetal. Numa edição de 2018, a publicação reporta um acidente vascular cerebral (AVC) num bebé de dez meses.
A nutricionista Sandra Gomes Silva conhece os casos e contrapõe: "As crianças estavam a ser alimentadas exclusivamente a leite materno, quando não era suposto naquela idade". No seu entender, "o problema está, muitas vezes, na forma inadequada como a dieta está a ser feita". E é neste ponto que reside o problema. "Não há dietas que excluam a possibilidade de défices nutricionais e a necessidade de suplementos", defende. Lembra que hoje em dia é recomendado a todos os bebés suplemento de vitamina D. Julga ser possível seguir uma dieta vegan, com "alguns cuidados", e considera que existe, sim, "muito preconceito e desinformação, mesmo entre profissionais de saúde".
Necessidade de suplementos
Esta posição está, porém, longe de ser consensual. Maria João Gregório, responsável pelo Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da DGS, assinala que, "enquanto nutricionista", considera que "uma dieta vegetariana estrita (vegan) não será a mais adequada para assegurar as necessidades nutricionais nesta faixa etária, pois o risco de défices nutricionais é elevado e com sérios riscos para a saúde". No entanto, sustenta que "é possível assegurar essas necessidades com o padrão vegetariano, desde que com um planeamento por parte de um profissional de saúde". Para os vegans, refere, "pode ser necessário recorrer à suplementação".
A responsável da DGS alinha com sociedades científicas como a American Academy of Pediatrics, que defende que um padrão vegan é apropriado em qualquer fase da vida desde que feito de forma informada.
A pediatra Arlete Crisóstomo considera "uma opção que os pais devem ponderar bem, porque não é inócua para a criança". "A filosofia de vida dos pais não tem de ser imposta aos filhos", sublinha. E assume desconfiar "de uma alimentação que precisa de recorrer sempre a suplementos".
A bastonária dos nutricionistas, Alexandra Bento, diz que é preciso perceber as motivações dos pais: ambientais, com defesa dos animais ou questões da saúde. E alerta para a necessidade de dizer "que não é o regime ideal em termos de saúde para os grupos vulneráveis", considerando que "o modelo mediterrânico é o mais completo". Se for por razões éticas, deve recorrer-se a um "bom plano para suprir as necessidades nutricionais" com "apoio especializado".
Há países com regras mais rígidas. As autoridades de saúde do Reino Unido deixam claro que não é recomendável a bebés antes dos dois anos. Na Bélgica, onde 3% da população é vegan, um comité de sábios concluiu que se trata de "um regime restritivo que cria carências inevitáveis e necessita de seguimento permanente das crianças para evitar atrasos irreversíveis no crescimento".
A vitamina que não é segregada pelas plantas (B12)
A compensação da vitamina B12, inexistente nos vegetais, é a principal fonte de preocupação para os vegetarianos e vegans. Por isso, são muitos os que tomam suplementos de B12 ou alimentos enriquecidos com ela. Exemplo: bebida vegetal com B12. O ferro, por seu lado, encontra-se em múltiplos legumes, mas é preciso ter em conta que, por esta via, a assimilação é reduzida. A pediatra Arlete Crisóstomo explica que "para a criança obter o ferro necessário, precisaria de consumir muita couve-galega". Também a vitamina D pode ser insuficiente, por causa da exclusão do peixe e dos laticínios. Uma das alternativas passa pela exposição solar: a pele sintetiza-a em contacto com a luz.
Têm sorte por não terem de comer animais
Liana, 39 anos, cantora, professora de fado e gestora de alojamento local, residente no concelho de Mafra - escolha que fez para poder viver no campo e oferecer diariamente ar puro aos filhos - é vegetariana há 18 anos e vegan há cerca de três. A data coincide mais ou menos com a do nascimento dos filhos gémeos, que completam quatro anos em breve. Os filhos também são vegan.
Quando vão a uma festa, as crianças perguntam com naturalidade: "Mãe, o que posso comer?". "Se têm animais, não querem". A mensagem que lhes transmite é que "têm sorte em saber que não precisam de comer animais para sobreviver". E eles, como todas as crianças, conta, adoram animais. Também tem o cuidado de "não classificar a carne como um produto bom ou mau. Procuro dizer que a nossa opção é baseada em informação".
Enquanto bebés, optou por dar-lhes leite de fórmula (tem na composição leite de vaca) até aos 10 meses, por recomendação médica e por ela ter perdido a amamentação cedo, facto que não se prende com o regime alimentar adotado, ressalva. A partir daí, e depois de muitas leituras em sites especializados, de estudos nas redes sociais, visionamento de documentários sobre animais (matadouros, etc.), a opção pelo veganismo para toda a família foi tomada. Mas tomada com "muita ponderação". Recorreu a apoio de um nutricionista e segue à risca os manuais de comida vegetariana da DGS.
MAIOR CONSCIÊNCIA
As motivações para a dieta vegan são sobretudo éticas e ambientais. "Temos de fazer um esforço para não contribuirmos para o sofrimento dos animais", diz. "Até porque cada vez mais esses produtos estão cheios de hormonas, químicos. Também para o clima, é melhor que a indústria baseada no animal diminua".
Durante a gravidez tomou suplementos iguais aos de outras grávidas que não são vegetarianas. Hoje em dia, a toma do suplemento B12 é uma rotina em família.
"Sendo vegan, sabia que ainda teria de ser mais consciente, acrescenta responsabilidade", diz. "Até porque os gémeos tiveram problemas cardíacos (relacionados com o facto de serem gémeos, conta), que foram detetados precocemente, mas obrigou a redobrar cuidados". Sempre sentiu apoio nos hospitais onde foram assistidos e a nutricionista abordou-os sempre. "Depois das explicações sobre as refeições que lhes dava, a nutricionista percebia que não havia razão para se preocupar". Essa fase difícil faz parte do passado e os meninos atravessaram o inverno sem ficarem doentes. Um dia, "posso ter ali um ativista e um caçador de leões", afirma, com humor, "mas enquanto estiverem comigo vão seguir a opção da família, como acontece com as outras famílias". O importante é dar-lhes refeições saborosas, diz.