Aparelhos complexos são a última fronteira de salvamento quando o corpo já está a falir. Há 12 doentes ligados à máquina.
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Há dois tubos transparentes, grossos como mangueiras de jardim, que entram e saem do corpo do homem de 44 anos. É muito obeso, está acamado, o corpo nu só com uma fralda, coberto até ao peito por um lençol, olhos fechados, está desacordado, e tem à volta dele um arquipélago de máquinas com fios distendidos e ecrãs que pulsam a emitir avisos e sons. Mas são aqueles dois tubos largos e translúcidos que chamam a atenção - estão cheios de sangue que corre por fora do corpo do homem, em permanente circulação; num deles, ligado à linha femoral, abaixo do abdómen, o sangue escorre escuro, o que quer dizer que tem pouco oxigénio, entra numa máquina, é transformado, e sai imediatamente a correr por outro tubo, já vermelho vivo, mais claro, já oxigenado, que reentra nas veias do homem junto à jugular.
É a máquina que lhe faz bater o coração e lhe tonifica o sangue, uma ECMO, que na tradução da sigla inglesa quer dizer Oxigenação por Membrana Extra Corporal. É a máquina que o agarra e o impede absolutamente de morrer.
Ali é o piso 6 do Hospital de S. João, no Porto, Unidade de Cuidados Intensivos, última fronteira de salvamento quando o coração já não lateja sozinho nem os pulmões têm força para manter a respiração. Em todo o hospital, que é a unidade referencial do norte do país, há agora cerca de uma centena de doentes internados com covid-19 e 36 deles estão nos cuidados intensivos, 22 dos quais no piso 6, com 12 ligados à linha das máquinas ECMO perenais.
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"São máquinas extraordinárias", concorda o doutor Sérgio Gaião, intensivista do Centro de Referência ECMO do S. João, que é coordenado pelo especialista Roberto Roncon. "A sua velocidade de circulação é imensa, mantêm um débito de cinco litros de sangue bombeados por minuto, muito superior, por exemplo, às máquinas de hemodiálise dos doentes renais, que movimentam 300 mililitros por minuto", diz, sem espanto, algum o doutor Gaião.
"Todos os pacientes em ECMO são muito graves, evidentemente, este é o expoente máximo da doença do ponto de vista respiratório, e quando entram nas ECMO é porque já estiveram ligados ao ventilador, mas a ventilação invasiva já não era suficiente para os manter vivos a respirar", explica.
Com uma média de idades de internados que irá dos 40 aos 60 e poucos anos, o homem obeso, a entrar agora na terceira semana de internamento com covid, é o que ali inspira mais cuidados porque tem um "jackpot de patologias" entre os pulmões, o coração e os rins. "A doença demora muito", torna o doutor Gaião, "a média de dias em ECMO é mais prolongada do que noutras infeções graves" - o recorde de internamento ali é de 150 dias; foi um homem cinquentenário que os especialistas do S. João foram resgatar a outro hospital e que hoje "já está curado, já faz reabilitação, já reaprendeu sozinho a respirar".
Gratificante é a palavra-chave
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Apesar do trabalho complexo e praticamente sensacional que ali se faz, o ambiente tem uma certa extravagância com a acalmia que se sente pairar. "A equipa está extremamente bem treinada, rotinada", diz a sorrir o enfermeiro Ricardo Cruz, especialista de pediatria agora "emprestado" à unidade UCI, que fala atrás de uma máscara branca e acabou de desfardar o fato protetor que lhe dava uma aparência supralunar. "Somos muito bem dirigidos e estamos preparados para antecipar os problemas quando eles ainda nem estão no horizonte". Enfermeiro pediatra e "ecmista", o nome que ali se dá aos especialistas em ECMO, conta que este ano já salvou "um bebé mínimo ligado à máquina, era mesmo mínimo, pesava 2,8 kg, um cisquinho, e foi muito emocionante quando percebemos que o podíamos salvar".
Gratificante é a palavra-chave de Marisa Barros, também enfermeira e que é mãe há quase dois anos, também comovida com o bebé miniatural. "Quem entra aqui é porque está muito mal e é muito gratificante ver a evolução e a recuperação das pessoas e depois vê-las a sair com a esperança de uma boa qualidade de vida, é algo que não se esquece". O mais difícil, completa a enfermeira Marisa a antecipar a enxurrada emocional, "é lidar com os sentimentos todos dos doentes e das famílias, porque são muitas horas, muitos dias aqui e todos interiorizamos as emoções deles, vão connosco para casa, não somos robôs, não há como as evitar, aquilo que sentimos não é uma farda que possamos pendurar e deixar aqui ficar".
Ainda longe do ponto de rutura, mas já sob a pressão de ter entrado no nível 3 do plano de contingência, o Hospital S. João prepara-se agora para a inevitabilidade de subir nas próximas semanas ao nível 4, o último e mais grave em que um hospital pode operar. "Face ao aumento dos casos covid, vão aumentar os internamentos, claro, e vamos entrar no nível 4 de contingência, é natural, estamos preparados, muito bem preparados", diz o doutor Sérgio Gaião, muito pausado, muito tranquilo, com uma segurança excecional.