Seria o cenário ideal de um filme sobre uma cidade abandonada - carruagens vandalizadas, vidros partidos, pintura descascada, ferrugem abundante - mas, com a reabertura das oficinas de Matosinhos, o cinema transforma-se em tratamento de saúde urgente, prioritário, para a ferrovia nacional.
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É como se lhe dessem um novo coração, pulmões e pernas para correr ao fim de 80 anos de vida, 20 dos quais ao abandono. Uma espécie de portal do tempo instalado nas oficinas da CP de Guifões, Matosinhos, dá acesso à Schindler vermelha e branca dos anos 40 a brilhar que está pronta para correr mais 400 mil quilómetros. Vai seguir para a linha do Douro e ainda tem janelas que dão para abrir e bancos que rodam a 180 graus. É uma das composições reabilitadas desde que a unidade, encerrada em 2012, reabriu. Foi mesmo há dias.
Os comboios alinhados são antigos, mas o espaço não é de todo um museu. É uma oficina que traz os comboios de novo à vida, para mais 30 anos de serviço de transporte público.
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Ali, as cirurgias são por vezes tão profundas que só sobra mesmo a casca de aço macio, flexível, coberta com grafitos ou um manto de pó, musgo, cicatriz do período que passou no exterior, ao tempo, e que há de ser removida na totalidade. O interior das velhas composições e das automotoras é retirado, limpo, renovado, os bancos estofados de novo. Profissionais de diferentes artes - mecânicos, serralheiros, carpinteiros, pintores, eletricistas, muitos mais - juntam-se à volta do "doente". Depois do diagnóstico surgem as pancadas de martelo, o desmembramento e o fogo da máquina de soldar, tudo feito com muito espaço.
Encomendas garantidas para quatro anos
O bloco tem oito mil metros quadrados de área e uma carteira de encomendas que assegura trabalho nos próximos quatro anos. Até ao fim deste ano, serão 140 postos de trabalho, diretos e indiretos.
Oxalá os humanos tivessem a mesma sorte. Entrar numa sala com o PVU - Potencial de Vida Útil - esgotado e sair de lá prontinhos a rolar. É o que acontece com as composições e automotoras estacionadas em Guifões.
Mesmo ao lado da Schindler vermelha está uma Série 0450, azul. Está pendurada a secar numa espécie de cavaletes gigantes. É outro paciente ressuscitado, após duas décadas parado, inútil, no Entroncamento. Há desses às dezenas, espalhados pelo país, à espera de um desfibrilhador que os coloque de novo sobre carris. Será essa a mais nobre missão de Guifões - reanimar comboios.
No auge da atividade, o complexo oficinal empregava 400 pessoas. Foram saindo alguns, os resistentes transferidos para Contumil, no Porto, onde está ainda muito do que há de voltar à "nova velha" casa do material circulante de média potência.
Nem gostava de olhar para aqui. Quando percebi que era para reabrir isto foi um entusiasmo muito grande
Sentado num dos confortáveis bancos da Schindler, José Ferreira, ferroviário há 30 anos, exprime a desilusão pelas decisões políticas, resumindo tudo numa só frase: "Nunca devíamos ter saído daqui". Preservou o olhar, e o coração, do abandono do parque durante os oito anos em que esteve longe. "Nem gostava de olhar para aqui. Quando percebi que era para reabrir isto foi um entusiasmo muito grande", sorri o técnico da oficina.
Num país que coloca todos os dias 1400 comboios nas linhas, Guifões é um ponto estratégico para a aposta na ferrovia anunciada pelo Governo. Os comboios ali reanimados vão suprir as necessidades imediatas nas ligações intercidades e no serviço regional. O material que for renovado vai servir linhas como a do Minho e libertar as automotoras que estão alugadas a Espanha, cerca de 20, para troços não eletrificados, como nas linhas do Oeste, do Alentejo e do Algarve. Além disso, as oficinas são o local onde passam a ser feitas as revisões gerais dos comboios urbanos do Porto. Sem elas, a CP não conseguiria assegurar a tarefa.
O sonho de um comboio português
Na parte renovada há uma maquete que mostra o complexo projetado, muitos dos edifícios nunca chegaram a ser feitos, mas há espaço para ocupar mais 24 mil metros quadrados.
O armazém das peças está a ser montado. A cantina vai reabrir no final do mês e mais para o fim do ano abre um centro de competências ferroviárias com cursos profissionais que resultam de parcerias com a Universidade e o Politécnico do Porto.
O caminho é criar um cluster, também com empresas privadas, que aposte na modernização do setor, tendo em vista a construção de um comboio português e o relançamento de um setor estratégico em termos ambientais