Ema Paulino, presidente da ANF, defende maior complementaridade e articulação com serviço público.
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Espera que o papel das farmácias durante a pandemia tenha sido um balão de ensaio para novos projetos em complementaridade com o Serviço Nacional de Saúde. A nova presidente da Associação Nacional de Farmácias, Ema Paulino, quer negociar com a tutela serviços que geram poupanças para o Estado e melhorias na saúde da população.
A pandemia valorizou o papel das farmácias enquanto parceiras do sistema de saúde?
Sem dúvida. Veio valorizar e tornar mais visível aquilo que já existia que é a confiança que a população deposita nas equipas das farmácias comunitárias. Julgo que poderá abrir portas futuras para outro tipo de atividades.
O que foi mais difícil?
Foi lidar com as expectativas da população. Termos de explicar porque numa semana não era preciso usar máscara e na semana seguinte já era; porque os testes, no início, não faziam sentido e depois já faziam. Manter as equipas das farmácias, que estavam sob grande pressão, sempre informadas sobre as alterações e depois passar a mensagem para a população sem descredibilizar o sistema foi, sem dúvida, o maior desafio.
As farmácias deverão ser envolvidas na vacinação covid-19?
Penso que é mais uma questão de quando do que de se vão ser envolvidas. Tendo em conta a proximidade às pessoas e que a solução de vacinação adotada não é sustentável, porque os enfermeiros são muito necessários nos centros de saúde e hospitais, faz sentido aproveitar as farmácias e o facto de terem profissionais com competências para vacinar.
Em conjunto com os cuidados primários?
Sou uma acérrima defensora dos regimes de complementaridade. Estamos, neste momento, muito mais conscientes de que os cuidados têm de ser centrados na pessoa. Deve-se respeitar o seu trajeto e as suas preferências. As pessoas devem poder decidir se querem fazer o teste rápido na farmácia ou no laboratório ou ser vacinadas numa farmácia ou no centro de saúde. Mas, havendo várias estruturas e profissionais a concorrer para o mesmo fim, é fundamental garantir que haja transmissão da informação. E que toda a informação alimente um registo central, que seja partilhado por todos os profissionais de saúde, para que cada um saiba o que cada elemento da equipa de saúde está a fazer. É esse o passo que falta dar.
As farmácias devem ter acesso à informação clínica dos utentes?
Devem ter mais acesso e alimentar essa informação. Os dados clínicos, de acordo com a legislação, são pertença das pessoas. Portanto, as pessoas devem poder partilhá-los com os profissionais que consideram que fazem parte da sua equipa de saúde.
Que vantagens é que isso traz?
Por exemplo, há medicamentos que são contraindicados em determinadas doenças, outros que interagem entre si. Precisamos de ter acesso a diagnósticos, ao histórico terapêutico para podermos garantir a segurança das pessoas. Mas também faz sentido alimentar essa ficha quando recolhemos informação, quando fazemos a medição da pressão arterial, da glicémia...
Que serviços quer negociar com o Ministério da Saúde?
Começo pelo serviço de renovação da terapêutica, um trabalho essencialmente administrativo e burocrático, que pode ser transferido para a farmácia. Com o benefício de, na farmácia, ao renovar a terapêutica, podermos e devermos, em conjunto com o médico prescritor, definir quando essa renovação é adequada. Este serviço está implementado em muitos países e tem sido reivindicado pelas associações de doentes. Envolveria sempre uma pré-autorização por parte do médico, portanto não lhe retira nenhuma autonomia e responsabilidade. Ajuda a melhorar o acesso, desburocratiza os centros de saúde e liberta os médicos para fazerem mais atividade clínica, o que está em linha com o programa eleitoral do PS.
Que outros serviços podem prestar?
O acompanhamento nas doenças crónicas, a promoção da adesão à terapêutica e a monitorização da efetividade dos medicamentos ao longo do tempo. Grande parte das urgências devem-se à descompensação de doenças, que podem ser evitáveis com uma monitorização atempada. As farmácias também podem agir ao nível da promoção da saúde ou da identificação de pessoas em maior risco de desenvolver uma doença e intervir de forma precoce. Isso tem potencial de gerar poupanças ao sistema de saúde, de melhorar a saúde e a qualidade de vida da população.
A nova configuração política abre a porta a mais acordos com o setor privado?
Penso que há claramente uma vontade de utilizar o setor das farmácias, tendo em conta as suas características de proximidade para responder às necessidades das pessoas. O programa eleitoral do PS fala do papel de proximidade das farmácias e da intenção de aumentar os balcões do utente em freguesias que não têm cobertura de centro de saúde. E a nossa intenção é que as farmácias possam ser essas extensões porque têm profissionais de saúde treinados e têm equipamentos de telemonitorização para, em conjunto com as equipas de saúde, fazerem o acompanhamento dos doentes. No programa socialista há abertura para essa complementaridade com o setor privado, que é o das farmácias, mas com uma missão de serviço público.
Já há partidos que querem mudar a Lei de Bases da Saúde (LBS) para incluir mais privado... faz sentido?
Penso que a atual LBS tem abertura suficiente para que as farmácias sejam consideradas em complementaridade com as estruturas do serviço público. Mas claro que gostaríamos de ver o setor privado mais reconhecido nesse papel, não só apenas quando o SNS não consegue dar resposta. Gosto mais de complementaridade do que sentir que são usadas apenas quando o serviço público não responde porque nos dá mais estabilidade e nos ajuda a prever os investimentos.
Disse que são capazes de gerar poupança para o SNS. Em que situações?
Um dos principais exemplos, que acabou por gerar remuneração para as farmácias, é o serviço de troca de seringas. Mas há estudos que demonstram, por exemplo, o valor do papel do farmacêutico nas doenças respiratórias, com o ensino da utilização dos dispositivos de inalação. Se estes dispositivos não forem bem usados, não produzem o seu efeito. Nos ensaios clínicos a adesão é 100%, mas na vida real há condicionantes que depois geram as descompensações e obrigam as pessoas a recorrer às urgências ou a usarem medicamentos mais caros para controlarem a doença. A intervenção farmacêutica aumenta a adesão à terapêutica, melhora o controlo da efetividade dos medicamentos e isso transforma-se em poupança.
É o caso da distribuição dos medicamentos hospitalares nas farmácias.
Esse é um serviço que acelerou no contexto pandémico e que traz poupança significativa, nomeadamente para o utente, que não tem de se deslocar quilómetros nem de faltar ao trabalho para ir ao hospital buscar a medicação.
Já está decidido como vão pagar às farmácias por esse serviço?
É um dos dossiês que gostaríamos de tratar com o novo Executivo. Queremos um sistema que seja sustentável e escalável e, para isso, precisamos de uma remuneração específica para as farmácias.