Esperas mortais, alta com TAC errado e bebé vacinado a dobrar. O pior da Saúde
Dois doentes que morreram nas urgências depois de terem estado horas sem observação médica; uma utente com sintomas de AVC que teve alta com o TAC de outra pessoa; um bebé vacinado contra a meningite em duplicado. Os casos inaceitáveis do SNS que passaram pelas mãos da Reguladora da Saúde.
Corpo do artigo
A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) deu a conhecer, esta terça-feira, as deliberações concluídas durante o quarto trimestre de 2021.
Entre os casos apreciados, a maioria ocorreu em hospitais e teve origem em reclamações ou em notícias. Alguns deles mostram o que de pior se passa nos serviços de saúde.
Morre na urgência à espera de ser visto pelo médico
31 de janeiro de 2020. Um homem de 60 anos morreu no Serviço de Urgência do Hospital de Beja, depois de três horas e meia à espera de ser observado por um médico.
O doente, diabético, com Hepatite C e histórico de recurso à urgência foi ao Hospital José Joaquim Fernandes - que pertence à Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA) - por emagrecimento, perda de apetite, náuseas e vómitos nos 15 dias anteriores, revela o relatório. No momento da triagem foram identificados sinais de desidratação e foi-lhe atribuída pulseira amarela.
Durante a espera, o acompanhante alertou por duas vezes o enfermeiro para o tempo que já havia decorrido. Quase quatro horas depois, quando o doente foi transferido da cadeira para uma maca, entrou em paragem cardiorrespiratória e morreu.
O hospital instaurou um processo de inquérito para averiguar o sucedido, cujas conclusões não foram disponibilizadas atempadamente à ERS.
A reguladora concluiu que "a conduta da ULSBA não se revelou suficiente à garantia dos direitos e interesses legítimos do utente" e emitiu uma instrução para, entre outras medidas, o hospital "implementar procedimentos que assegurem que, durante a permanência no serviço de urgência, os utentes sejam devidamente monitorizados e acompanhados enquanto aguardam observação médica".
Decidiu ainda enviar o processo para as ordens dos Médicos e dos Enfermeiros para se pronunciarem sobre a atuação dos profissionais envolvidos e dar conhecimento da deliberação ao Ministério Público.
Teve alta com base em TAC realizado a outra doente
27 de novembro de 2020. Uma utente com sintomas de AVC dá entrada no Serviço de Urgência do Hospital São Francisco Xaxier, que faz parte do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental. Teve alta no mesmo dia, após a realização de uma TAC ao cérebro e diagnóstico de demência.
Dois dias depois, a utente regressou ao serviço porque os familiares notaram que a nota de alta pertencia a outra doente e tinha data de 2013. "Neste dia, e após realização de novo TAC foi diagnosticado um AVC com início a 27 de novembro de 2020, que, alegadamente, já seria visível na TAC previamente realizada", tendo a doente ficado internada, refere o parecer da ERS.
A reguladora condena a conduta do hospital por não ter sido "suficiente para a salvaguarda dos legítimos interesses da utente" e emitiu uma instrução à unidade de saúde para "assegurar procedimentos que garantam que os registos clínicos dos utentes sejam fiáveis", bem como os cuidados prestados e que adote medidas internas para prevenir a ocorrência de erros/troca de identificação de utentes.
Bebé vacinado em duplicado
12 outubro de 2020. Uma criança de seis meses foi vacinada em duplicado, aos cinco e aos seis meses, contra a meningite B no centro de saúde de Crestuma/Olival, que pertence ao ACES Grande Porto VIII Espinho/Gaia.
O caso ocorreu no ano em que aquela vacina entrou no Programa Nacional de Vacinação, passando a ser gratuita. O bebé tomou uma das doses, prescrita pelo pediatra, numa farmácia e a inoculação não ficou registada no boletim de vacinas eletrónico. Quando a enfermeira do centro de saúde entrou no sistema, foi avisada que a segunda toma estava em falta e, sem questionar o pai, inoculou a criança. Que assim recebeu duas doses, uma aos cinco e outra aos seis meses.
Não foram registadas complicações, até porque a referida vacina já tinha tido esquemas vacinais diferentes, mas ainda assim a ERS emitiu uma instrução para que sejam cumpridos os protocolos do Programa Nacional de Vacinação.
Homem morre à espera na urgência e hospital multa enfermeira
26 de maio de 2020. Um homem de 42 anos morreu no Hospital de Leiria, depois de ter permanecido mais de seis horas na sala de espera do Serviço de Urgência (SU) sem observação médica. Depois de um inquérito interno, o hospital decidiu afastar o médico e multar a enfermeira.
A notícia da morte é relatada no Jornal de Notícias e foi transcrita no parecer da reguladora da Saúde. Conta que, apesar do doente ter apresentado sintomas de enfarte do miocárdio, foi triado com uma pulseira amarela (atendimento urgente, no máximo em uma hora).
Cerca de quatro horas depois do registo de entrada no serviço, um médico acedeu ao processo do doente, mas em nenhum momento foi pedido um eletrocardiograma. O homem acabou por morrer às três da madrugada depois de ter avisado uma enfermeira de que não se sentia bem.
O caso levou o Hospital a abrir um processo interno que culminou na cessação da prestação de serviços do médico generalista responsável pelo atendimento do utente e na instauração de um processo disciplinar à enfermeira que fez a triagem com a aplicação de uma multa correspondente a um terço da sua remuneração diária pelo período de dez dias.
Na resposta à reguladora, os registos remetidos pelo hospital indicam que tudo aconteceu numa "noite de grande afluência no SU, com doentes com espera média de cerca de 6 horas, início de turno com mais de 50 doentes em sala de espera".
Nos mesmos registos lê-se que o hospital estava "sem capacidade para colmatar necessidades, com apenas dois colegas médicos gerais durante o turno".
O caso foi arquivado pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde. A reguladora remeteu o processo para as ordens dos Médicos e dos Enfermeiros analisarem a atuação dos profissionais e emitiu uma instrução ao hospital para que tome medidas no sentido de garantir que os doentes não são sujeitos a períodos de espera excessivamente longos para realização de exames e/ou tratamentos e para que se faça uma nova triagem sempre que o tempo máximo da triagem de Manchester for excedido.