Já circulavam pelas cidades, mas a pandemia e o afastamento social fizeram com que se multiplicassem. De comida a medicamentos e produtos de mercearia, entregam tudo ao domicílio. Só no ramo das refeições, foram mais dois mil novos profissionais em apenas dois meses.
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Novecentos e trinta e nove por cento. Isso mesmo, 939%. Foi este o aumento do número de estafetas de entrega de comida ao domicílio registado entre 22 de março, data em que foi decidido o primeiro estado de emergência devido ao eclodir da pandemia de covid-19 em Portugal, e o dia 2 de maio, quando terminou o confinamento obrigatório. Os números foram avançados pela plataforma online Fixando, que realizou um levantamento das alterações profissionais e laborais em vários serviços.
Antes já perfeitamente visíveis nas grandes cidades, os estafetas passaram o ocupar os espaços urbanos com mais frequência. Com as suas motorizadas ou bicicletas, passaram a ser os portadores da chave que fixa a fronteira entre o espaço seguro de uma casa e tudo o que lá pode entrar sem que seja necessário dar um passo no exterior. "Analisámos o crescimento verificado na nossa plataforma, que conta com mais de 50 mil profissionais, e fizemos a comparação com igual período do ano passado", explica Alice Nunes, responsável pela área de Desenvolvimento de Negócio da Fixando. "O crescimento foi maior do que o esperado", reconhece.
O aumento mais espetacular ocorreu nos serviços de entrega de comida (ver quadro ao lado). Só no Porto, o movimento aumentou 1700% e em Lisboa 1000%. "Estamos a falar de uma média de 2000 novos profissionais a nível nacional. Por distrito, esses números estão ainda a ser estudados caso a caso", assinalou Alice Lopes. O estudo, a que o JN teve acesso, realça nas suas conclusões que os portugueses estão "a mudar os seus padrões de consumo, na medida em que procuram, cada vez mais, serviços que permitam aumentar o conforto das suas casas e a sua qualidade de vida." Para comprovar esta ideia geral, e ainda de acordo com o mesmo dossiê, a procura de serviços online cresceu 120%, com um aumento médio do valor total de transações a subir cerca de 75 mil euros em relação aos primeiros meses de 2019. Além da entrega de refeições, que cresceu globalmente qualquer coisa como 1750%, outros serviços movimentaram muitos mais trabalhadores ao domicílio, o que teve reflexos na faturação registada.
Para Rio Fernandes, professor catedrático do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a proliferação destes trabalhadores e destes serviços não surpreende. "Ganharam um novo protagonismo, sem dúvida alguma. O crescimento tem sido explosivo devido ao contexto provocado pelas consequências da pandemia de covid-19 e veio para ficar", acredita o especialista. "É toda uma estrutura emergente no sistema económico, a chamada economia das plataformas. Que vem colocar desafios interessantes, nomeadamente o aumento e dependência do digital, com todas as principais cadeias logísticas a apostarem neste tipo de plataformas", explica Rio Fernandes. "Por outro lado, e isso é muito interessante até porque aparentemente contraditório, dá-se o fenómeno de as grandes superfícies perderem terreno para as lojas de proximidade, as velhas mercearias, por exemplo, fenómeno que se verifica Europa fora e que já chegou a Portugal", adianta.
Um levantamento realizado esta semana pela britânica BBC revelou que os serviços de entrega ao domicílio são o maior foco de concentração de novos empregos a nível global no Reino Unido. Só a gigante Amazon, por exemplo, abriu 15 mil postos de trabalho desde o início da pandemia. Outra empresa, a Hermes, foi responsável pelo lançamento de 10.500. Na Alemanha, a Delivery Hero, maior empresa germânica de comida ao domicílio, registou 92% de aumento de procura e prevê faturar mais 515 milhões de euros até ao ano, revelou a Bloomberg. Do outro lado do mundo, na Tailândia, os pedidos aumentaram 20 vezes em relação ao período pré-pandemia. Alice Nunes, da Fixando, acredita que o panorama espoletado pela nova normalidade dos dias irá refletir-se numa futura alteração de hábitos quando os perigos maiores das consequências da covid-19 se esfumarem e a segurança sanitária voltar a ser realidade. Em Portugal e no Mundo.
"Muitas empresas tiveram que se adaptar a um novo contexto e perceberam que o online era, é e continuará a ser a chave para que sobrevivam no mercado. A procura pelas entregas ao domicílio irá manter-se porque muitas pessoas encontraram nelas uma possibilidade de conforto que antes da pandemia ou conheciam mal ou desconheciam de todo", considera. Rio Fernandes concorda, embora tema que a "precariedade laboral de grande partes dos estafetas" possa agravar-se. "É curioso porque estamos a falar de pessoas que são, em simultâneo, trabalhadores e patrões de si próprios. Ora, essa complexidade, muito ligada à tal nova economia digital, é reveladora da enorme fragilidade a que estão sujeitos os estafetas. É toda uma estrutura económica diferente que está a surgir e a consolidar-se, e que a pandemia veio, inesperadamente, acelerar", reforça.
Além dos estafetas responsáveis pela entrega de comida, a plataforma Fixando detetou movimentações acima do normal noutro tipo de serviços ao domicílio, com subidas gerais na ordem dos 790%. Tal deveu-se, também, ao facto de esta ser uma área em que "formação específica não é exaustiva", logo a possibilidade de entrar imediatamente em funções é maior.
"Serviços de entregas, tratamento de animais ao domicílio, reparação de eletrodomésticos e equipamentos eletrónicos, e serviços de melhoria da habitação foram os mais procurados pelos portugueses neste período de confinamento", adiantou o estudo da Fixando. Sinal desse aumento significativo foi o valor médio por transação entre março e maio, que rondou os 44 euros, bem acima dos 18 euros em igual período de 2019.