Acordo do Estado com o setor social não atualiza aumento para cuidados continuados e admite vir a punir familiares em dívida.
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O Governo vai reavaliar o modelo e o financiamento da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) e pondera aplicar mecanismos contra as falhas de pagamento por parte das famílias. As duas medidas constam do Compromisso de Cooperação para o Setor Social e Solidário para 2019/2020, assinado há cerca de um mês, numa altura que em são muitas as instituições que reclamam prejuízos e dificuldades (ler ao lado). O Governo compromete-se a abrir 446 novas camas, do Norte ao Sul do país, até ao fim do ano.
Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, reconhece que parece um paradoxo. O que os leva a abrir camas de cuidados de média e longa duração é "ajudar os portugueses e o Governo a implementar a rede. Se não for feito, a rede está condenada à falência". Além da questão do pagamento via Estado - valor que ficou por aumentar este ano -, Manuel de Lemos alerta para as dívidas por parte dos agregados familiares dos utentes. "Só nas Misericórdias, no início do ano, a dívida dos familiares estaria nos três milhões de euros". Para os cuidados de longa duração, Estado e família têm de somar 62 euros por dia.
Por partes. O acordo de Compromisso de Cooperação para o Setor Social e Solidário, assinado a 11 de julho, excluiu os cuidados continuados do aumento de 3,5% aplicado à maioria das áreas. As creches e os lares, por exemplo, vão receber mais 3,5% do Estado este ano.
Os cuidados continuados não vão ver esse valor atualizado e o Governo diz estar em curso uma alteração do modelo. Para já, uma equipa interministerial, com representantes da área da Saúde e da Segurança Social, deverá avaliar as necessidades deste serviço e, entre outros aspetos, ponderar um pagamento diário na componente dos cuidados de saúde. As decisões deverão ser conhecidas até final do ano para que entrem em vigor no primeiro trimestre de 2020. O Governo prevê ainda que se avalie a adoção de mecanismos a aplicar nas situações de incumprimento no pagamento das comparticipações familiares por parte de utentes, sem as concretizar.
Quanto às novas vagas, a abertura dentro do universo das misericórdias - à exceção de Lisboa, sob alçada da Santa Casa -, está a ser promovida por instituições que "alinham no risco", revela Lemos. Nas que estão em funcionamento, as dificuldades financeiras são colmatadas "afetando recursos das próprias misericórdias". A maioria das vagas, segundo o Governo, deverá ficar disponível este mês.
Feridas não são pagas
Astregildo Godinho, presidente da direção da Casa da Criança do Rogil, onde funciona uma valência de cuidados de longa duração, e Ângelo Guedes, responsável pela Unidade de Cuidados Continuados de Figueira, Penafiel, admitem estar a ter prejuízo. No Alentejo, não fora a autarquia de Aljezur e outras ajudas laterais não daria para manter o serviço. Os dois denunciam que os pagamentos das úlceras de pressão, feridas que os utentes acamados trazem de casa, estão por pagar pelo Governo.
Lino Maia, presidente da Confederação das Instituições de Solidariedade Social (CNIS), refere que "de facto não houve aumento para as unidades de cuidados continuados, mas que vai continuar a haver um diálogo sobre essa matéria".
A Associação Nacional de Cuidados Continuados continua a reclamar uma dívida ao Ministério da Saúde por falta de pagamento de retroativos aos sucessivos aumentos anuais. O Ministério considera que, à luz das portarias, os valores foram liquidados. A data do acordo não coincide com a da portaria e a associação defende que os retroativos devem de ser pagos desde a data do acordo.
Unidades em risco por dificuldade de ter enfermeiros
Depois de terem denunciado dificuldades financeiras devido ao facto de acusarem o Governo de estar a pagar algumas das tipologias abaixo do preço de custo, as unidades de cuidados continuados integrados (UCCI) do país confrontam-se, atualmente, com um novo problema que está a colocar em risco o seu normal funcionamento: a falta de enfermeiros.
Para José Bourdain, presidente da Associação Nacional de Cuidados Continuados (ANCC), a resolução deste problema passa pela reposição das 40 horas semanais na função pública e pela facilitação da imigração, procurando trazer profissionais para Portugal, para colmatar as falhas existentes em várias unidades.
O problema da falta de profissionais nas UCCI do país já se faz sentir desde 2017. "Mas tem vindo a agravar-se nos últimos anos e, particularmente, nestes meses de verão", afirmou ao JN José Bourdain, presidente da ANCC.
Esta falta de meios - fruto da emigração de enfermeiros, da rotatividade dos profissionais e, na opinião do presidente da ANCC, do facto de o Governo ter "cometido um enorme erro" e ter diminuído os horários dos enfermeiros de 40 horas para 35 horas semanais - coloca em causa a prestação de cuidados de saúde aos doentes e significa uma sobrecarga de trabalho para os profissionais que estão ao serviço das unidades. "Os enfermeiros que estão ao serviço, trabalham muito mais horas do que as que deveriam trabalhar. Não é legal, mas é uma situação de emergência nacional".
A falta de profissionais está a deixar algumas unidades em "situação limite". "Mais grave do que um problema financeiro é o problema da falta de profissionais", declarou José Bourdain, exigindo medidas por parte do Governo, que no mês passado anunciou a abertura de mais 446 camas nas UCCI. "Ainda não abriram, mas também vão-se abrir mais vagas quando as unidades não têm profissionais para trabalhar e estão com graves dificuldades financeiras?", questionou.