Fernanda de Almeida Pinheiro: “Não há crise na Justiça, há falta de investimento”
Estamos a pegar num trevo e a avaliar, a partir dele, a floresta inteira. O trevo são os processos mediáticos e de especial complexidade, a floresta a Justiça que, explica a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, através da sua metáfora, está a ser vítima de meras perceções.
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Não há crise no setor, defende, mas falta de recursos e de atratividade para fixar profissionais. Sem essas condições, uma mudança na liderança do Ministério Público dificilmente poderá trazer novos resultados.
Qual é a impressão que tem dos primeiros dois meses e meio de funções da sua colega Rita Alarcão Júdice, agora ministra da Justiça?
Para já é positiva. Nota-se uma diferença do ponto de vista da vontade de fazer. Foi apresentado por parte da Ordem, logo na primeira reunião que tivemos, este caderno de encargos com os assuntos que entendemos que são prementes não só para a advocacia, mas também para o país e para o edificado da justiça. E notamos uma enorme atenção àquilo que foi dito e alguma evolução. No que diz respeito à CPAS (Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores), por exemplo, andámos meses a exigir que fosse constituída a comissão, que já poderia ter começado a trabalhar.
A Caixa de Previdência é um problema que se arrasta há vários anos?
É um problema premente. A Caixa é obrigatória, logo tem necessariamente de garantir os direitos constitucionais das pessoas que fazem contribuições e isso não sucede. A advocacia, os solicitadores e agentes de execução não têm acesso a subsídios de parentalidade dignos desse nome, a apoios na doença e em quebras abruptas de rendimentos.
O regime geral da Segurança Social não pode resolver esse problema?
O regime geral pode, o que temos é de encontrar a solução que queremos. No entender da Ordem, só podem existir três soluções. A primeira delas é cumprir a vontade expressa pelos advogados, advogadas, solicitadores e solicitadores, que é poder optar. Mas aquilo que nos diz a Caixa de Previdência, a direção, é que isso não é possível porque vai deixar a Caixa sem sustentabilidade. Eu entendo que não é verdade. Para já, dependerá do número de pessoas que quer sair. E depois, quem quiser ficar com a Caixa, naturalmente que terá sempre de pagar essa fatura. Mas, se considerarmos que de facto não existe essa possibilidade, integramos a Caixa de Previdência no regime geral da Segurança Social. Ou então é criado um modelo novo em que o Governo vai ter de apoiar a Caixa de Previdência ou permitir que sejam feitos descontos para um lado e para o outro.
Das três hipóteses, onde é que está a posição da bastonária?
Eu não quero saber qual é a hipótese, temos é de garantir que os direitos das pessoas são respeitados e que o sistema respeita a capacidade contributiva individual de cada um. Como é que vamos chegar lá? Precisamos de estudos para ver.
A ministra da Justiça marcou a atualidade esta semana ao comentar o perfil de liderança no Ministério Público e a necessidade de alguém que consiga meter ordem na casa. Partilha dessa visão em relação à situação atual do MP?
Eu não vou tecer comentários sobre os comentários da sra. ministra sobre aquilo que ela entende que deve ser o perfil do Ministério Público.
Mas pode comentar qual a sua visão desse perfil.
Também não vou comentar qual é a minha visão do que se passa dentro do Ministério Público, porque eu estou aqui em representação de uma instituição e as instituições não se comentam umas às outras. É evidente que existem muitas coisas na Justiça que estão mal. Não é um exclusivo do Ministério Público, como não é um exclusivo dos tribunais, como não é um exclusivo dos funcionários, como não é um exclusivo dos advogados. Há muita coisa que pode e deve ser melhorada. O que me parece é que existe um enorme clamor que se reflete em relação a determinadas coisas, nomeadamente sobre os processos mediáticos. Não me parece inocente este clamor.
São processos que não representam a Justiça no seu todo?
Estamos a falar de processos que são muito visíveis e que criam uma perceção na sociedade que não me parece minimamente adequada com aquilo que é a Justiça. Os problemas que nos colocam os megaprocessos são vários. A sua mediatização, o tempo que levam, as fugas de informação, os comentários, que são feitos 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, o que faz com que a perceção que o cidadão tenha sobre a Justiça seja completamente distorcida. Se estamos a falar de 140 processos de especial complexidade em 10 anos, não representam nem minimamente a Justiça. E estamos a pegar num trevo e a avaliar uma floresta inteira relativamente a esta matéria. É evidente que eu nunca poderei dizer que a Justiça é célere, porque não é. Mas posso dizer que a Justiça Penal, está perfeitamente enquadrada na média de existência de processos da União Europeia.
É exagerado o sentimento generalizado de crise na Justiça?
É exagerado. Aliás, ainda a semana passada, na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril organizada pelo Conselho Superior de Magistratura, uma das coisas que o conselheiro Cunha Rodrigues dizia é que, para falar naquela conferência, foi consultar a sua biblioteca e um livro de 1970 falava precisamente sobre a crise da Justiça. Eu volto a repetir, não é sério dizer que não existem problemas na Justiça, porque existem, eles estão à vista de toda a gente, há uma enorme falta de funcionários judiciais, o próprio sistema de acesso ao direito precisa de melhorias, há uma enorme falta de magistrados… Até do ponto de vista da investigação, melhoramos dando meios às pessoas.
Isso não tem sido feito?
Não me parece. Vê algum investimento na Justiça? Eu não vejo nenhum. Quer a nível do edificado, em que estão identificados problemas em tribunais, falta de salas, onde chove dentro das salas, onde as pessoas não têm condições mínimas de trabalho, estão identificados, não estão resolvidos. Temos um problema gravíssimo de falta de funcionários judiciais, que estamos agora a tentar colmatar. Parece que vai abrir um novo concurso, mas no último que abriu, o valor mínimo de remuneração que aquelas pessoas tinham não chegava aos 900 euros. Como é que conseguimos convencer alguém a vir trabalhar para a Justiça, ter de estar deslocado da sua residência e ter um vencimento deste teor em que não consegue sequer pagar despesas de habitação para o sítio onde é colocado? O juiz é a mesma coisa. A carreira de juiz, hoje, não é minimamente atrativa. As jovens gerações não têm interesse nenhum nestas profissões, porque são profissões muitíssimo exigentes quer do ponto de vista técnico, quer pessoal.
As pessoas que vão para a profissão são menos qualificadas?
Corre esse risco, vai baixando o nível, mas também há um problema a nível dos tribunais superiores. Quando chega ao Supremo Tribunal de Justiça vai a tempo para se reformar e isto do ponto de vista da jurisprudência é muito grave, porque a pessoa não tem tempo para solidificar a sua presença e isto são tudo regras que têm que alterar. Na legislatura anterior foi feita uma proposta pelo Centro de Estudos Judiciários para alterar as regras de acesso à profissão e até agora não sabemos o que é feito dessa proposta.
Mas no final sempre há crise, pelo retrato que traça.
Não, não é crise, é falta de investimento. Dizer que há uma crise, é quando temos meios e as pessoas não trabalham, há uma crise porque não querem. O que eu estou aqui a dizer é exatamente o contrário, é que as pessoas não fazem um melhor serviço porque não têm condições para o fazer. É evidente que a liderança pode trazer coisas novas, mas, atenção, podemos escolher o melhor perfil do mundo e arredores, se não temos meios para trabalhar, continuamos a ter o mesmo problema e continuamos a culpabilizar aqueles que menos culpa têm daquilo que sucede, porque a falta de meios é gritante.
Pegando no recente pacote anticorrupção, temos necessidade de mais leis ou, mais uma vez, o que há é falta de meios?
Acho que há medidas positivas neste pacote, outras já existem. Eu percebo que fica muito bem falar sobre estes temas, porque, mais uma vez, a perceção que é dada à opinião pública é que nós temos um problema muito grave.
Fica bem no sentido de capitalizar politicamente com estes temas?
Naturalmente, porque a perceção que existe de que temos um problema de corrupção não é verdadeira. A média de corrupção deste país é muito parecida com a média da União Europeia e temos uma boa legislação. Temos, naturalmente, de melhorar do ponto de vista da efetivação das punições e da concretização, não me parece que tenhamos de fazer grandes alterações à lei, até porque está mais do que comprovado que um país que tem muita legislação não é necessariamente um país menos corrupto por isso. O importante é investir, e aí penso que o Governo vai nesse sentido e bem, na questão da prevenção e na questão da educação, porque, de facto, parece-me que temos problemas graves na perceção sobre o que é tráfico de influências, o favorecimento, a corrupção. Se cultivarmos este tipo de valores, provavelmente vamos ter uma intolerância por parte da sociedade portuguesa a comportamentos que são tão lesivos como aqueles que vemos em licenciamentos e nas câmaras. Já agora, o mau funcionamento das instituições é um convite a este tipo de coisas.
A burocracia é amiga da corrupção?
Completamente. As pessoas desesperam e muitas vezes praticam atos porque precisam de trabalhar, de fazer um conjunto de coisas nas suas atividades empresariais, nas suas atividades pessoais, que não é admissível com os tempos de resposta que temos por parte das instituições.
Quando se fala em mais recursos, tem referido a necessidade de ferramentas de inteligência artificial. A tecnologia é uma das vertentes em que a Justiça está obsoleta?
Completamente. Felizmente agora com o PRR houve uma consciencialização e uma tentativa de modernizar as coisas, mas temos plataformas com graves limitações e que dificultam muito a tramitação normal do dia-a-dia. Relativamente às ferramentas, para dar um exemplo, temos o processo da Madeira, em que é normal que aconteça a recolha de terabytes e terabytes de informação, toda ela devidamente encriptada. O perito faz a análise de informação muito bem, tão bem como a inteligência artificial, só que qual é a diferença entre um e outro? É o tempo. Com ferramentas adequadas, a celeridade em termos de investigação seria completamente diferente. Segundo me dizem, eu não sei se isso é verdade ou não, o DCIAP tem uma licença e tem um programa de inteligência artificial. Se é assim, estamos mal. Estas coisas são morosas e não se consegue investigar sem meios. A análise a terabytes e terabytes de informação leva necessariamente meses e anos e não é isso que se pretende.
Sendo a publicidade a regra em processos penais, o que explica que seja tão aplicado o segredo de justiça em processos mediáticos?
A exceção só é visível porque o segredo de justiça é demasiadas vezes violado. Existem necessidades de segredo do ponto de vista da investigação, mas também do ponto de vista do visado, porque o objetivo é evitar que o visado possa ser publicamente exposto em relação a uma coisa que não está ainda confirmada. Qual é o problema do segredo de justiça? É que não é cumprido. E eu não posso aceitar que me digam, “ah, isto é muito difícil de investigar”, porque isso não é resposta. Estamos a falar de processos mediáticos, há um enorme interesse noticioso e é natural que as pessoas queiram saber a informação que está no processo. Por outro lado, estamos a falar do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que tem os melhores e os mais bem preparados investigadores do nosso país, já para não falar na Polícia Judiciária. Mesmo assim, não é possível saber quem violou o segredo de justiça? Isso só não é possível porque as pessoas não estão empenhadas.
E não estão porquê?
Isso tem de lhes perguntar. Agora, há aqui uma coisa que eu tenho a certeza. O número de pessoas que acedem ao processo não é desmesurado. E é rastreável, como é evidente.
Poderão ser advogados, algumas dessas pessoas?
Podem ser advogados, podem ser juízes, podem ser funcionários, podem ser procuradores. Todos eles têm acesso ao processo. Esta última violação do segredo de justiça, curiosamente, não pode ser de um advogado porque ele não teve acesso àquelas escutas.
E admite que haja alguma intenção política, uma vez que se tem falado tanto do momento em que essa divulgação é feita?
Essas intenções são várias. Podem ser políticas, podem ser pessoais, podem ser o que forem. O problema aqui não é a intenção de quem divulga a informação. O problema aqui é que ela pode ser divulgada. E não deve ser. Em vez de investigar, ganhávamos mais em prevenir: é criar mecanismos para que isto não possa acontecer de maneira nenhuma. Entendo que o segredo de justiça deve existir, que faz falta, porque protege, mas se não se consegue garantir, é preferível optarmos pela publicidade. O que se passa agora e que não é correto, é as pessoas saberem as coisas através da comunicação social.
Como estão as ações intentadas contra a Ordem devido ao fim do acordo de reciprocidade com os advogados brasileiros?
Até agora não tivemos uma única condenação. A Ordem dos Advogados tomou essa medida, vai fazer um ano, porque entendeu que ela era absolutamente essencial à segurança jurídica dos cidadãos e cidadãs, porque tinha provas dadas de que as pessoas que vinham a exercer em Portugal – e nós também lá, seguramente, o sistema jurídico é completamente diferente – não conhecem o processo penal português, o processo civil português, e colocaram muitos cidadãos e muitas cidadãs em perigo. Foi proposto, e infelizmente não foi acolhido pelo meu congénere do Brasil, que fosse feito um exame de averiguação de conhecimentos cá e lá.
Está a ser ainda trabalhada alguma alteração, ou estamos neste momento com essa questão fechada?
Não, está fechadíssima, porque inclusivamente o estatuto agora nem tem uma norma habilitante. Aquilo que a lei do estatuto dizia era que poderia existir entre Portugal e o Brasil um acordo de reciprocidade, não havendo vontade de uma das partes esse acordo pode naturalmente ser revogado. Foram feitas umas 40 ações intimação contra a Ordem dos Advogados e tem sido declarado pelo Tribunal Administrativo que não são o meio próprio, porque não está em causa nenhum direito, liberdade ou garantia que sejam impedidos. Qualquer cidadão brasileiro pode aceder à Ordem fazendo estágio, igual a qualquer licenciado em Direito que temos aqui.
Tem-se confirmado que a remuneração dos estagiários é um entrave no acesso à profissão?
Sim, sim, pessoas que estão a tentar aceder à Ordem pedem-nos a nomeação de um patrono porque não conseguem encontrar um. A ordem tem essa obrigação de nomear, mas todos os patronos que forem nomeados podem pedir escusa com base neste elemento: eu não consigo remunerar um estagiário. Portanto, se o Governo não promover como deve modos de financiamento a quem não pode pagar, é evidente que não conseguem. É esmagadora a maioria das advocacias em prática individual. Não têm praticamente recursos para se sustentar a si próprios e às suas famílias, quanto mais para pagar os estagiários enquanto estão a ensinar a profissão. Quem já paga, sempre pagou, como é o caso das sociedades. Aliás, as pessoas têm uma ideia muito errónea relativamente aos estagiários nas sociedades. Há estagiários muitíssimo bem remunerados nas grandes sociedades do país e os associados, de uma forma geral, também o são. O que não têm depois é outro tipo de direitos, nem de previdência, nem de direitos laborais. Isso sim é que deveria preocupar o nosso Governo, mas nós também apresentaremos uma proposta nesse sentido, porque, naturalmente, as pessoas têm direito ao equilíbrio entre a sua vida privada e a sua vida profissional, o que raramente é respeitado.