Associação de Municípios contesta auto de transferência que reduz as câmaras a prestadores de serviço e prevê sanções financeiras e a devolução das unidades ao Ministério da Saúde.
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O Governo ameaça suspender as transferências financeiras para os municípios e, no limite, reaver os centros de saúde, caso entenda que está a ser feita uma má gestão das unidades pelos autarcas. A regra surge nos autos de transferência, que estão a ser propostos às câmaras que aceitaram a delegação de competências na área da saúde. Doze já assinaram. A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) considera "inaceitável" o conteúdo dos autos por violar o princípio da autonomia local, consagrado na Constituição, e por prever sanções e até a retirada dos poderes que foram delegados através de lei.
Também reduzem os autarcas ao papel de prestadores de serviço do Estado, submetendo vários atos de gestão municipal à monitorização de técnicos das administrações regionais de saúde (ARS). "É inaceitável e ilegal o que está escrito" nos autos de transferência, que têm sido apresentados às autarquias, sublinha Ribau Esteves ao JN. O vice-presidente da ANMP recusa que o Ministério da Saúde preveja a "aplicação de sanções" e a "devolução das unidades", desrespeitando o princípio universal da descentralização.
"Há vários aspetos ilegais e de violação da autonomia do poder local", insiste. O desagrado já foi transmitido ao Governo em fevereiro, numa reunião com a ministra da Modernização do Estado, Alexandra Leitão, que se terá comprometido a promover um encontro de trabalho com o Ministério da Saúde para introduzir correções nos autos, segundo fonte da ANMP. Ao JN, o Ministério da Saúde entende que é cedo para mudar os autos, garantindo que o documento foi consensualizado com os municípios, as ARS e a Administração Central do Sistema de Saúde, antes da aprovação pela secretária de Estado Adjunta da Saúde, a 26 de junho de 2020.
"O processo de descentralização na saúde deve continuar o seu percurso de consolidação, pelo que, tendo decorrido apenas poucos meses após o início da assinatura dos autos de transferência aprovados, não parece avisado proceder-se a qualquer revisão, sem que seja possível fazer uma consistente avaliação de todo o processo", argumenta o Ministério.
Avaliação de desempenho
No âmbito do processo de descentralização, a entrega das unidades (centros de saúde e equipas de tratamento da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) às autarquias é precedida da celebração de um auto de transferência. No auto a que o JN teve acesso, define-se um modelo de vigilância pela ARS. Cabe-lhe classificar o desempenho camarário em nove indicadores e, caso obtenha má classificação, a autarquia sujeita-se a ser punida pelo Governo.
Em caso de "incumprimento do nível de serviço mínimo", a Câmara será alvo de uma "comunicação prévia por escrito". Se, na sequência dessa notificação, não sanar o incumprimento, "pode o Ministério da Saúde suspender as transferências financeiras" decorrentes do processo de descentralização ou "de um futuro contrato-programa, até que o mesmo seja sanado", lê-se no auto. No limite, registando-se uma má execução das competências transferidas, e não sendo dada resposta à "interpelação" da ARS, "pode o Ministério avocar e exercer a substituição dessas competências, devendo o município devolver" todas as verbas "indevidas" em 30 dias.
"As ARS vão ser os nossos fiscais e nós vamos ter de prestar contas", critica o vice-presidente Ribau Esteves. "É um mecanismo de prestação de serviços ao Ministério da Saúde e nós não somos prestadores de serviço do Estado".
Decisão
Autarcas obrigados a pedir aval às ARS
Decisão A descentralização de competências na área da saúde atribui às câmaras, para além da manutenção de imóveis e de outros equipamentos (não clínicos) afetos à atividade regular, a gestão dos assistentes operacionais ao serviço dos centros de saúde, incluindo o direito a recrutar, a avaliar e a discipliná-los.
No entanto, nos autos de transferência que estão a ser propostos às autarquias, o Governo submete, em vários aspetos, os autarcas à tutela das administrações regionais de saúde (ARS).
Ponto de discórdia
Um dos pontos de discórdia, já assinalado pela Associação Nacional de Municípios Portugueses junto do Governo, relaciona-se com a gestão de pessoal. Isto, porque determina que "a afetação, mobilidade e substituição dos assistentes operacionais carecem de parecer prévio por parte da ARS", lê-se no auto de transferência, a que o JN teve acesso.
Para os autarcas, essa limitação à autonomia camarária e essa subordinação às ARS contrariam o decreto-lei que regula a descentralização de competências entre a administração central e o poder local.
Acresce que não é a única situação em que essa limitação ocorre. Por exemplo, a realização de trabalhos de beneficiação nos edifícios das unidades de saúde pelas câmaras tem de ser sujeita a avaliação prévia das ARS, mesmo que tenham sido solicitadas pelas direções dos agrupamentos dos centros de saúde. Os cadernos de encargos para o fornecimento de bens e de serviços às unidades também têm de ser sujeitos a parecer prévio vinculativo. Qualquer intervenção de manutenção obriga a comunicação, com o envio de "documentação" para a ARS local.
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Acordo tripartido
No momento da entrega da gestão de centros de saúde às câmaras, é celebrado um auto de transferência, subscrito pelo Ministério da Saúde, pela Administração Regional de Saúde (ARS) e pelo município.
Nove indicadores
Os autos de transferência incumbem a ARS de monitorizar o funcionamento das unidades através de nove indicadores: conservação dos imóveis, gestão dos assistentes operacionais, pagamento de rendas, serviços de limpeza, desinfeção e controlo de pragas, arranjos exteriores, vigilância ativa e passiva, fornecimento de eletricidade, gás, água e saneamento e "realização da totalidade dos transportes solicitados diariamente" pela equipa clínica.
Câmara avaliada
Essa monitorização será realizada através de "observação in loco" e da avaliação do "tempo de resposta às solicitações" e das reclamações. Então, será atribuída uma classificação ao desempenho do município em cada um dos nove indicadores referidos, que pode ir de "satisfaz bastante até "não satisfaz".
12 autos de transferência já celebrados nas regiões Norte, Alentejo e Algarve. O Ministério da Saúde ultima mais oito autos nas regiões do Centro e de Lisboa e Vale do Tejo.