Há cada vez mais viciados da raspadinha nos centros de apoio a toxicodependentes
Psiquiatras alertam que dependência deste jogo cresceu "muitíssimo" e já o comparam ao álcool. Até a Segurança Social referencia casos para tratamento.
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O número de pessoas viciadas em raspadinhas que pede ajuda a instituições que tratam comportamentos aditivos está a aumentar de forma exponencial. A maioria dos pedidos é feita junto dos hospitais e Centros de Apoio a Toxicodependentes (CAT), mas as clínicas privadas também confirmam o "boom" de internamentos e chamam-lhe "a droga do século XXI".
A popularidade das raspadinhas em Portugal "esconde situações de dependência que correspondem a histórias de vida dramáticas", salienta Pedro Morgado, psiquiatra e professor da Universidade do Minho, coautor do estudo "Raspando à superfície de uma ameaça negligenciada: o enorme crescimento da lotaria instantânea em Portugal".
Gastam 160 euros por ano
Neste estudo, há cerca de um ano, os investigadores alertaram para "o aumento brutal do dinheiro investido neste jogo em Portugal e para as características que favorecem o estabelecimento de comportamentos de jogo problemático ou patológico". Em média, cada português gasta 160 euros por ano em raspadinhas, dez vezes mais do que em Espanha.
Se a dimensão das apostas é desta ordem, era uma questão de tempo até o fenómeno se repercutir nos pedidos de ajuda e esse tempo chegou. "Cerca de 40% dos meus pacientes são jogadores sem ser de casino físico, uma grande parte de raspadinhas. Em termos percentuais, estão equiparados aos alcoólicos", revela Alexandre Inverno, da clínica Linha d"Água.
Levado ao hospital pela PSP
No setor público, a perceção é a mesma. "A prevalência tem vindo a subir muitíssimo", atesta Sofia Pinto, psiquiatra responsável pela Unidade de Psiquiatria Comunitária do Centro Hospitalar Universitário do Porto. A responsável avisa que "estamos a deixar passar o fenómeno sem intervir muito sobre ele, o que é preocupante". E exemplifica com um caso recente de um homem que se ia atirar da Ponte da Arrábida após perder tudo para o vício da raspadinha: "Foi salvo pela PSP e encaminhado para cá".
51,1% das vendas da Santa Casas da Misericórdia de Lisboa (SCML) em 2019 vieram da raspadinha (1718 milhões de euros) As receitas dos jogos sociais foram de 3360 milhões de euros.
Emídio Abrantes, coordenador do Centro de Respostas Integradas de Aveiro, ao qual pertence o CAT local, também constata "um aumento de procura" de ajuda, com maior intensidade nos últimos dois anos: "Os casos chegam-nos por via do próprio, por via da família e por via do médico de família, mas por regra a iniciativa parte sempre da família".
Ao contrário dos jogos de casino, a adição na raspadinha é acompanhada pelo problema da impossibilidade de autoexclusão, sendo que este é "um passo importante" para o tratamento psicoterapêutico, concluiu um estudo de janeiro deste ano, de que Pedro Morgado também é coautor: "Não existem quaisquer mecanismos que as protejam e isso é um problema importante".
Outro é conhecer a verdadeira dimensão do fenómeno, pois não há dados oficiais sobre o problema, seus impactos e propostas para respostas que possam reduzir os custos de saúde, mas sobretudo os sociais.
O vício da raspadinha "afeta muito a população mais vulnerável", afirma Sofia Pinto, pois é um jogo presente em vários locais e que não é caro. "Já há casos sinalizados entre beneficiários do RSI porque as pessoas acabam por ficar depauperadas de recursos por causa deste tipo de jogo e são referenciados pela Segurança Social para tratamento".
Mulheres e faixas etárias mais velhas prevalecem
As pessoas mais velhas e as mulheres são, por motivos diferentes, os principais alvos da raspadinha. Os mais velhos porque veem no jogo uma forma de distração fácil numa fase da vida em que podem ter menores rendimentos e formas de entretenimento. Já as mulheres porque "são um grupo menos exposto aos ambientes de casino e de jogos de cartas", que encontram na raspadinha "uma porta financeira acessível e desconhecida do agregado familiar para a compra de pequenos bens", explica a psiquiatra Sofia Pinto.
Proposta
SICAD pede que Estado financie internamento por jogo
O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) propôs ao Governo que o internamento de pessoas com problemas relacionados com o jogo passe a ter um financiamento público, à semelhança do que acontece com os internamentos relacionados com o álcool e drogas.
"Neste momento temos contratos de convenção com comunidades terapêuticas do setor social e privado que têm sobretudo a ver com substâncias ilícitas ou com álcool. O que pretendemos é alargar o âmbito", ilustra João Goulão, diretor-geral do SICAD.
O responsável adianta que "há pedidos de ajuda relacionados com vários tipos de jogo" e que a possibilidade de internamento neste tipo de patologias conseguiria alcançar melhor sucesso.
Atualmente, o internamento apenas é feito com recurso a comunidades terapêuticas privadas, o que é inatingível para uma grande parte dos viciados em raspadinhas, porque já não têm dinheiro para o tratamento. Alexandre Inácio, da clínica Linha d"Água, esclarece que "quando um jogador assume que tem um problema com o jogo, é porque o buraco financeiro já é grande".
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