Entidade Reguladora da Saúde pede clarificação urgente dos conceitos junto das unidades do SNS.
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No ano passado, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) instruiu os hospitais públicos para passarem a registar como teleconsulta os contactos telefónicos e por e-mail entre médico e doente. Resultado: os números sobre a prestação de serviços de telemedicina dispararam, são pouco fiáveis e está instalada a confusão. A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recomenda a clarificação urgente dos conceitos junto dos hospitais, de forma a distinguir cuidados de saúde à distância que configuram consultas de telemedicina daqueles que não devem ser assim registados.
Responsável pelo acompanhamento da atividade de telemedicina, a reguladora questionou, diretamente, os hospitais sobre a prestação daquele serviço e analisou a informação disponível no Portal da Transparência do SNS, tendo encontrado muitas "inconsistências" na informação e uma subida substancial da atividade em 2021, quando o expectável era que tivesse acontecido logo no primeiro ano da pandemia.
Os dados do Portal do SNS revelam que o número de consultas de telemedicina aumentou cerca de 49% entre 2019 e 2020 e, depois, dá um salto de 697% de 2020 para 2021. Comparando 2021 com 2019, o ano pré-pandemia, a evolução é de 1090%.
"Incongruências"
Porém, quando questionados pela ERS, os hospitais apresentam números muito diferentes. De 2019 para 2020, registaram um aumento de 214% na atividade das teleconsultas e de 465% nas consultas médicas sem a presença do utente. Enquanto que, de 2020 para 2021, tiveram um aumento de 158% nas teleconsultas e uma redução de 13% nas consultas médicas sem o utente. De 2019 para 2021, há um aumento de 711% e de 391%, respetivamente.
"Existem incongruências entre a informação disponível no Portal da Transparência e a remetida pelos prestadores à ERS, no que respeita à realização da atividade de telemedicina", refere a reguladora, no estudo "Prestação de Serviços de Telemedicina nos Hospitais do Serviço Nacional de Saúde", a que o JN teve acesso. Tais incongruências, acrescenta, "evidenciam problemas ao nível da classificação e reporte, que parecem, desde logo, decorrer de dúvidas quanto às atividades enquadráveis no conceito de telemedicina e reforçam a necessidade de clarificar, junto dos prestadores de cuidados de saúde e das demais entidades competentes, os critérios subjacentes ao registo destas consultas".
Auscultada a ACSS sobre o brutal aumento de teleconsultas em 2021, registado no Portal da Transparência do SNS, a reguladora conclui que, para essa subida, contribuiu o alargamento do conceito de teleconsulta. Esse alargamento foi definido numa circular normativa, emitida em fevereiro do ano passado pela ACSS e enviada aos hospitais. Na prática, passou a incluir os contactos por e-mail e telefone e a teleconsulta em tempo real deixou de implicar a presença de um médico, junto do doente. De resto, o registo da teleconsulta no equipamento informático passou a ser opcional, mantendo-se obrigatório o registo no processo clínico do paciente.
"É uma salada russa", conclui Eduardo Castela, presidente da Associação Portuguesa de Telemedicina e um dos médicos pioneiros da atividade em Portugal, considerando que telefonemas e e-mails estão longe de ser telemedicina (ler entrevista ao lado). A mudança de conceito impede leituras sobre volume de teleconsultas a partir de 2021. "Não é possível aferir com exatidão sobre a evolução das teleconsultas realizadas no último ano", conclui a ERS.
Teleconsulta
É uma consulta médica, no âmbito da telemedicina, realizada à distância com utilização de comunicações interativas audiovisuais e de dados. Em 2021, a definição da ACSS passou a incluir videochamadas, telefone móvel ou fixo, correio eletrónico e outros meios digitais. O registo no equipamento é opcional, mas é obrigatório no processo clínico do utente.
Tempo real e diferido
As teleconsultas podem ser em tempo diferido - com recolha de dados clínicos do utente e envio para outra entidade para avaliação e opinião - e em tempo real - consulta médica síncrona fornecida por um ou mais médicos.
Entrevista
"Salada russa" para mostrar serviço
Na opinião da Associação Portuguesa de Telemedicina, os telefonemas e os e-mails entre o médico e o doente configuram atividade de telemedicina?
Não. As consultas por telefone e por e-mail não são teleconsultas nem telemedicina. Já o meu pai, que também era médico, falava ao telefone com os doentes e isso nunca foi telemedicina.
Como vê este alargamento do conceito?
Neste momento, temos uma salada russa. Na pandemia, não nos preocupámos muito, porque o importante era criar condições para os utentes terem acesso, poderem contactar o médico. Mas contabilizar todos os contactos com os utentes como telemedicina parece-me que só tem o intuito de mostrar serviço e os números não traduzem a realidade.
Afinal, o que é a telemedicina?
Na génese, quando falamos em telemedicina, estamos a falar de uma consulta por videochamada em que, de um lado, está o doente e o médico e, do outro lado, está o médico especialista. Começámos isto na cardiologia pediátrica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra em 1998 e, atualmente, temos uma rede com todos os hospitais da região Centro e com os PALOP. Há doentes destes países que, após esta consulta, vêm diretamente para a cirurgia.
E o que mais inclui?
A telemonitorização à distância, o telerrastreio na dermatologia, a teleformação... Tem havido muitos avanços e é inevitável que continue.
Eduardo Castela, Presidente da Associação Portuguesa de Telemedicina