A verba para instalações de um centro dedicado à produção de células Car-T está praticamente assegurada. O recurso à manipulação celular “em casa” permitirá avançar com ensaios clínicos e reduzir custos dos tratamentos oncológicos.
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O IPO do Porto já tem praticamente garantida a verba para a instalação de um centro de produção de células Car-T, a tecnologia revolucionária usada no tratamento de vários cancros do sangue e com resultados para mais de 40% dos doentes. O investimento, previsto no âmbito da reprogramação de fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), totaliza cerca de 1,2 milhões de euros.
O aviso convite da Estrutura de Missão Recuperar Portugal decorre até dia 19, pelo que a candidatura do IPO do Porto ainda carece de aprovação. Mas o procedimento, feito com base nas necessidades das unidades de saúde do SNS, já detalha como serão distribuídas as verbas pelos beneficiários. No caso do IPO do Porto estão destinados 1 203 555 euros para o “Centro de produção de células Car-T in House”, bem como 2,3 milhões para renovação do internamento e ainda um milhão de euros para remodelação do serviço de gastroenterologia.
A criação do centro de produção Car-T in House, explicou ao JN o presidente do IPO do Porto, permitirá desenvolver projetos de investigação colaborativos e ensaios clínicos académicos, em benefício dos doentes. O objetivo “não é substituir a produção da indústria farmacêutica”, assegurou Júlio Oliveira. É estar na linha da frente da investigação e inovação terapêutica, garantindo o acesso dos doentes, com alguma redução de custos.
Mas mais do que as infraestruturas, o grande desafio de produzir células Car-T "em casa” será montar todo o processo, cumprindo os requisitos regulamentares, e capacitar os recursos, salienta José Mário Mariz, diretor do serviço de Onco-Hematologia do IPO do Porto.
Para alcançar este desígnio, o IPO do Porto acaba de integrar um consórcio liderado por uma empresa de biotecnologia de Guimarães, a Stemmatters, e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Com o nome “Car T-Matters – Transformar o panorama da terapia com células Car-T em Portugal” o projeto foi selecionado para financiamento competitivo pelo programa COMPETE 2030, gerido pela Agência Nacional de Inovação (ANI).
Mais de 230 doentes tratados
Seis anos depois, o IPO do Porto, pioneiro na colheita e infusão de células Car-T em Portugal, tratou 103 doentes adultos (até 20 de maio). Segundo informações recolhidas pelo JN, no IPO de Lisboa foram feitos 94 tratamentos, nove dos quais em crianças. Também em Lisboa, o Hospital de Santa Maria já tratou 33 doentes com estas terapêuticas. E, no ano passado, a inovação chegou à ULS de Coimbra, que até agora tratou cinco adultos.
Os doentes elegíveis para Car-T estão a aumentar todos os anos, assim como as autorizações para uso noutros tipos de cancro, como é o caso do mieloma múltiplo que poderá ter aprovação do Infarmed até ao final do ano.
Custam 300 mil euros
Estes tratamentos fazem parte do novo mundo da imunoterapia. Consistem na modificação dos linfócitos T do doente para os tornar mais eficazes a detetar e destruir as células cancerígenas. Esta manipulação é feita em laboratórios de farmacêuticas na Holanda ou Alemanha, mas cada “viagem” fica por cerca de 300 mil euros.
Mesmo deduzindo os ensaios clínicos, que saem a custo zero para o hospital, significa que o IPO do Porto já gastou perto de 30 milhões de euros numa terapêutica que ameaça a sustentabilidade das unidades de saúde.
“Os tratamentos Car-T são um exemplo de tecnologia revolucionária no tratamento da doença oncológica, mas a sustentabilidade é crítica, tem de ser desenvolvidos mecanismos de redução de custos”, reconhece Júlio Oliveira. Produzir em casa é, de resto, um desses mecanismos.
Quando as células modificadas regressam do centro da Europa são infundidas no doente e, ao fim de quatro semanas, cerca de 65% deixam de ter a doença detetável. Joana Pacheco, 34 anos, é um desses casos (ler mais em baixo). Os resultados são “muito significativos”, mas nem todos os doentes respondem e nem todos se livram da doença para sempre: “Entre 30% e 50% acabam por ter recidivas”, sublinha José Mário Mariz.
Uma vida aos sobressaltos que “renasceu” com a inovação
O mundo de Joana desabou em outubro de 2020. A um caroço no pescoço seguiu-se um diagnóstico que lhe trocou as voltas de tão mau que era: Linfoma não-Hodgkin. “Não queria acreditar, comecei a rir quando o médico disse o resultado”.
Discurso pausado, Joana Pacheco, 34 anos, residente em Alfena, ensaia um sorriso enquanto recorda o momento. Da consulta no hospital privado rumou ao IPO do Porto, onde começou a jornada dos exames e tratamentos de quimio e radioterapia. Em maio do ano seguinte, a doença desapareceu dos radares. “Estava curada”, conta. Ainda a vida a recompor-se aos poucos e, três anos depois, nova descida ao inferno.
Uns nódulos no peito, uma ressonância que já não deu para rir: recidiva do linfoma, desta vez instalado na zona do tórax. Quimioterapia mais agressiva, internamento e a doença a avançar. Foi o momento da viragem. Os médicos decidiram que devia fazer tratamento com Car-T.
O medo instalou-se, já lera sobre o assunto, conhecia os riscos da infusão de células modificadas, ouvira falar na toxicidade da terapêutica. Do lado de lá, uma equipa incansável a aplacar-lhe os receios. Joana acabou por dar o passo que tinha de dar. Fizeram-lhe a colheita das células e alguns dias depois voltaram a injetá-las na sua corrente sanguínea. “Dia 11 de novembro de 2024 foi o dia em que renasci”, rebobina, já com um sorriso aberto. “Estava bem, afinal não era o caos que tinha imaginado”. Em casa, sob atenção permanente do namorado por causa das reações, correu ainda melhor. “Fazia tudo, não conseguia estar parada, só queria voltar ao ginásio”, relata. Ao fim de um mês, recebeu um presente de Natal antecipado: a doença voltou a desaparecer. “Livrei-me de mais um”, pensou instantaneamente.
Joana Pacheco é uma dos 103 doentes tratados com Car-T no IPO do Porto entre maio de 2019 e maio de 2025. Os resultados estão em linha com o esperado. Quatro semanas depois da infusão, 65% apresentaram resposta completa, ou seja, a doença deixou de ser detetável, assinala José Mário Mariz, diretor do serviço de Onco-Hematologia. Mas daqueles, diz a literatura científica, entre 30% a 50% acabam por recidivar, a maioria no primeiro ano após o tratamento.
Do total de doentes tratados com Car-T, “68% estão vivos, dos quais 43% sem evidência da doença”, acrescenta o médico. Neste caminho da inovação, também houve perdas: um total de 32 doentes morreram (29 por progressão da doença e três por outras causas, nomeadamente infeciosas ou toxicidade neurológica). O que leva Mário Mariz a concluir que “a terapêutica não é tão tóxica como inicialmente se pensava”. E apesar de não ser solução para todos os doentes, tem “bons resultados”.