Divergências entre pais separados sobre "questão de particular importância" terão de ser resolvidas por juízes. Mãe antivacinas pediu ao Juízo de Família e Menores de Almada que impeça a inoculação da filha, que está à guarda da avó.
Corpo do artigo
A mãe de uma criança de 10 anos requereu ao Juízo de Família e Menores de Almada que a filha não fosse vacinada contra o vírus SARS-CoV2. Antivacinas, a mulher pediu ainda que o tribunal lhe reconhecesse "exclusiva competência" em "futuras decisões sobre vacinação", nos termos das responsabilidades parentais reguladas. Mas, em 29 de julho, a juíza Rita Silva Viegas respondeu que, à data, "não tinha nada a ordenar", por inexistir "orientação da Direção-Geral da Saúde quanto à vacinação na faixa etária da menor".
Este caso envolve uma criança que está à guarda da avó, no âmbito de um processo de promoção e proteção da menor, e faz adivinhar um novo tipo de conflito a cair nos tribunais, à medida que a vacinação contra a covid-19 se alarga a menores. Sobretudo por divergências entre progenitores separados, mas também entre pais e outros familiares a quem foram entregues os menores, como no referido caso de Almada, onde a mãe argumenta que o risco de morrer com covid-19 é "nulo nas crianças" ou que "a decisão de vacinar crianças é meramente política e perigosa".
Como os menores não podem decidir sozinhos sobre a vacina, competirá aos representantes legais fazê-lo (sendo que os pais, mesmo sem a guarda dos filhos, podem pedir a intervenção do juiz). Mas, se tais representantes legais não se entendem - e, como se tem visto, nem só os antivacinas se opõem à vacinação de menores -, os tribunais poderão ser chamados a decidir qual vontade prevalece.
O presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, Paulo Pimenta, comenta que não faltam ao sistema legal "mecanismos adequados às circunstâncias", aludindo ao Regime Jurídico do Processo Tutelar Cível. Mas, atendendo à falta de doutrina e jurisprudência sobre a questão e às divergências da comunidade médica, não será fácil antecipar o sentido das decisões judiciais. "A questão vai gerar jurisprudência muito extremada, para um lado e para o outro, enquanto não houver fixação de jurisprudência", prevê o advogado Gameiro Fernandes, especialista em direito da família e menores.
medir a importância
As "implicações da vacinação contra SARS-CoV-2 na jurisdição de família e crianças" já foram analisadas pela juíza Maria de Fátima Morgado Silva, num artigo, de janeiro, na revista "Julgar". A autora explica que, antes de mais, importa decidir se aquela vacinação é um "ato da vida corrente", como levar o menor a uma consulta pediátrica de rotina, ou uma "questão de particular importância" (QPI), como a realização de uma cirurgia. É a resposta à questão que nos diz se a inoculação da vacina pode ser decidida só por um progenitor, no primeiro caso, ou depende de ambos e (havendo divergência) suscitará a intervenção do juiz, se considerada uma QPI.
Logo aqui, há uma "zona cinzenta". "Não se afigura que esta vacinação se torna uma QPI para todas as crianças", diz a jurista. Pondo em cima da mesa argumentos contra e a favor da vacina, afirma que os juízes devem privilegiar o "superior interesse da criança", "sem descurar a saúde pública em geral".
Em tal ponderação, assume a juíza, "poderão existir circunstâncias relativas à família e à comunidade que aconselham a vacinação da criança". Será o caso, segundo exemplifica Maria de Fátima Morgado Silva, quando a criança é aluna de uma turma que inclui "alunos particularmente vulneráveis", quando frequenta um estabelecimento "com regime de internato" ou quando tem no agregado familiar um "adulto com risco de saúde significativo ou pessoas idosas".
JUÍZA QUESTIONA
E se a escola recusar crianças não protegidas?
No seu artigo sobre "implicações da vacinação contra SARS-CoV-2 na jurisdição de família e crianças", a juíza Maria de Fátima Morgado Silva também equaciona casos que podem extravasar tal jurisdição. Num deles, questiona se uma creche ou uma escola poderão "recusar a frequência da criança não vacinada". "Como estamos perante vacina que não consta do Plano Nacional de Vacinação e é facultativa, a resposta seria negativa", responde, admitindo, porém, que "surjam situações análogas" à de uma utente de um lar de Santiago de Compostela sem capacidade mental para decidir por si. A filha opôs-se à sua vacinação, mas o lar, por recear pela saúde dos demais utentes, recorreu para o tribunal, que "decidiu que o risco de não vacinar a idosa seria maior para ela do que vaciná-la", dando razão ao lar.