A diretiva 3/2020 do Chega, conhecida como a "lei da rolha" que impede os militantes de falarem publicamente sobre a vida interna do partido, já suspendeu 82 membros desde que foi criada, há um ano e cinco meses. Os opositores internos acusam o líder de ser "ditador" e estão a preparar uma ação judicial para reverter todas as suspensões, com base na ilegalidade da Comissão de Ética, o organismo que as aplica.
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As 98 suspensões e expulsões ao abrigo da "lei da rolha", que constam do site do Chega, abrangem 82 militantes. Alguns foram suspensos mais do que uma vez, sempre por tecerem críticas ao partido e aos seus dirigentes, nas redes sociais ou na imprensa. São vários os que contestam a utilidade e a legalidade de uma Comissão de Ética que "impõe medo e silencia" quem ousa criticar as opções do partido, como a contratação da ex-PAN Cristina Rodrigues ou os polémicos casos das dívidas do deputado Filipe Melo.
"Neste momento é um entrave à democracia interna do partido", entende José Dias, antigo vice-presidente do Chega, que propôs acabar com o organismo quando se candidatou ao Conselho de Jurisdição. José Dias sublinha que a Comissão de Ética "não existe em partido nenhum" e é "uma inovação sobre a qual o Tribunal Constitucional ainda não se pronunciou".
Como tal, vários militantes estão a preparar ações para entregar no Tribunal Constitucional (TC) que visam reverter as suspensões e expulsões com base na ilegalidade da Comissão de Ética. Para perceber os argumentos destes militantes é preciso recuar até setembro de 2020, data em que a Comissão de Ética foi criada na II Convenção Nacional do Chega, em Évora. Como todas decisões dessa convenção foram consideradas ilegais pelo TC, a Comissão de Ética teve de ser novamente criada em novembro de 2021, no Congresso de Viseu. Só que, antes disso, já estava a suspender militantes.
Ao JN, fonte oficial do TC confirma que "para efeito de anotação de alterações estatutárias", como é o caso da alteração estatutária que cria a Comissão de Ética, cabe ao TC, "em face dos documentos obrigatoriamente juntos pelo partido político requerente", verificar "se se encontram reunidos os pressupostos necessários para que a anotação seja processada". Até agora, essa anotação ainda não foi ratificada pelo TC.
"Estamos perante um órgão ilegal que, mesmo que um dia venha a ser ratificado, não tem efeitos retroativos", assegura José Lourenço, ex-líder da distrital do Porto do Chega, também ele vítima das suspensões da Comissão de Ética. No caso de Lourenço, desfiliou-se logo que soube da decisão da Comissão de Ética. Contudo, promete voltar para encabeçar a oposição a Ventura: "Obviamente que serei candidato contra o André Ventura. O Kim Jong-un é para a Coreia do Norte que tem que ir, se ele quiser eu até pago o bilhete, mas só de ida". Ventura, recorde-se, tem mandato como presidente do partido até 2025.
José Lourenço admite ser um dos impulsionadores do conjunto de ações que estão a ser preparadas para levar ao TC em breve: "Estamos a preparar as ações, temos um grupo de cerca de 300 pessoas, é muita gente e temos de sustentar bem, inclusive junto de pessoas que já meteram os processos individualmente".
Fonte oficial do partido tem um entendimento diferente e assegura sem "qualquer margem para dúvida" que a Comissão é legal pois "houve convocatória específica para o efeito e os delegados ao Congresso, eleitos por todas as concelhias do país, votaram pela Comissão de Ética por maioria". Para o Chega, "foi a democracia a funcionar" e, de resto, "as decisões da Comissão de Ética são sempre remetidas para o Conselho de Jurisdição Nacional".
Dois pesos e duas medidas
A par da ilegalidade, os opositores internos acusam a Comissão de Ética de ter "dois pesos e duas medidas". É tolerante com quem está próximo de Ventura e implacável com quem está longe do líder. Fonte oficial do partido nega: "É falso. Basta ver quem são os suspensos e verificar que nada tem a ver com opções políticas, mas sim com comportamentos que violam as regras disciplinares".
O que dizem então, essas regras? A diretiva 3/2020, assinada por André Ventura, prevê "sanções disciplinares" de suspensão ou expulsão quando algum militante faça "referência ofensiva a membros ou dirigentes do partido, seja em que contexto for, incluindo de defesa pessoal ou de terceiros". Sanciona ainda "todos os militantes e dirigentes que publiquem, na imprensa ou nas redes sociais, episódios ou narrativas sobre a vida interna do partido, com a evidente consequência de prejudicar a ação política do mesmo". Condena também os "ataques, diretos ou subtis", lançados por militantes contra outros membros.
Esta fiscalização é feita "não apenas nas publicações feitas em páginas públicas ou políticas, mas nas páginas de perfis pessoais, grupos públicos e grupos de conversação interna que são hoje capazes de alcance potencial", refere André Ventura, na Diretiva 3/2020.
Sem contraditório
Outra crítica direta feita pelos militantes à Comissão de Ética é a ausência de contraditório, ou seja, a suspensão sem que os militantes se pronunciem sobre os factos em causa. Fonte do partido atesta que "para garantir o contraditório durante o processo, é-lhes enviada uma notificação para poderem responder". Contudo, vários militantes, entre eles José Lourenço, confirmaram ao JN que não houve qualquer notificação de contraditório antes da suspensão.
Segundo o artigo 28º dos novos estatutos do Chega, a Comissão de Ética aplica "medidas cautelares e disciplinares provisórias de efeitos imediatos, sem prejuízo do competente processo disciplinar ordinário que correrá termos no Conselho de Jurisdição Nacional, e direito a audiência prévia".
Vários conhecidos
Entre os 82 militantes suspensos há vários nomes conhecidos ligados ao Chega. Para além de José Lourenço, estão lá Jorge Rodrigues de Jesus, ex-presidente da distrital de Faro, Luís Eustáquio, antigo vice da distrital de Évora, Rui Pedro Boaventura, antigo secretário da Distrital de Braga que já soma quatro suspensões, Carlos Furtado, ex-líder do Chega Açores que também foi expulso, Luís Miguel Mendes, ex-presidente da distrital de Coimbra, e Luís Pedroso, vice-presidente adjunto da Direção do Sindicato Unificado da Polícia.
Entre os suspensos ou expulsos estão ainda oito dos 17 conselheiros nacionais eleitos por listas de oposição a André Ventura no Congresso de Viseu. Mónica Lopes e Nélson Silva, primeiro e segundo nomes da lista opositora, estão entre os que já foram suspensos. Ressalve-se, contudo, que Mónica Lopes foi suspensa em maio de 2021, meio ano antes de ter encabeçado a lista ao Conselho Nacional contra André Ventura. Dos oito conselheiros de listas afetas à oposição que já foram suspensos até hoje, apenas dois o foram depois de terem sido eleitos.