Estado e empresas têm até 2024 para cumprir novo regime, associações temem que aplicação derrape para o fim do prazo. Em oito anos, contratações na Função Pública aumentaram 56%.
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Dois anos depois de ter sido publicada legislação a definir quotas para a contratação de pessoas com deficiência nas empresas e na Administração Pública, a Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes (CNOD) e a Associação Portuguesa de Deficientes (APD) receiam que esta medida só seja adotada daqui a dois ou três anos, uma vez que a lei prevê um período de adaptação de quatro ou cinco anos consoante o número de trabalhadores.
Favorável à imposição de quotas de 1% para empresas e instituições públicas com 75 a 100 trabalhadores e de 2% quando têm mais de 100 funcionários, o presidente da CNOD, José Reis, manifesta, contudo, dúvidas se a nova lei será cumprida. "Dar demasiado tempo de tolerância pode adormecer as coisas", acredita. Por outro lado, garante que "é raro o Ministério que está a cumprir as quotas".
O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social refere que "é a área governativa da Educação que apresenta maior concentração de postos de trabalho ocupados por trabalhadores com deficiência, correspondendo a 25,3% do total das administrações públicas, em 31 de dezembro de 2019". Em 2011, havia 11 918 postos de trabalho ocupados por deficientes, em 2019 já eram 18 617, o que representa um aumento de 56%.
Estado não fiscaliza
A presidente da APD, Ana Sezudo, também teme que se tenha de aguardar mais dois ou três anos para que se cumpra a lei. "O próprio Estado é muito mau a fiscalizar. A legislação das acessibilidades tem dez anos e as coisas continuam como continuam", lamenta.
Ana Sezudo diz que recebeu denúncias de pessoas deficientes que concorreram a vagas de emprego no setor privado, que foram ocupadas por pessoas com incapacidade temporária, devido a problemas oncológicos. "Já antes da pandemia tínhamos verificado situações estranhas na função pública. Os números estavam a aumentar, sem que houvesse novas contratações", revela.
"Parte-se do princípio de que as pessoas com deficiência são menos produtivas e depois há os custos de adaptação dos postos de trabalho", justifica. "Existe muito desconhecimento e o preconceito de que as pessoas com deficiência só servem para fazer coisas menores, quando são muito mais esforçadas e, apesar das dificuldades, não desistem. Têm brio, querem fazer o trabalho em condições".
SABER MAIS
1031 pessoas em 2020
O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social diz que os únicos números disponíveis alusivos a 2020 são referentes ao Instituto do Emprego e da Formação Profissional, que "colocou 1031 pessoas com deficiência".
Mulheres lideram
A 31 de dezembro de 2019, as mulheres representavam 67% do total dos trabalhadores com deficiência na Administração Pública, assegura o Ministério do Trabalho.
Homens na autarquia
Ao contrário dos restantes subsetores da Administração Pública, 54,3% dos trabalhadores com deficiência na administração local, no final de 2019, eram homens.
Temos de provar todos os dias que somos capazes
Sónia Santos estudou para professora mas trabalha como telefonista, o que não a faz sentir realizada.
Sónia Santos, 41 anos, nasceu cega, mas isso não a impediu de fazer o percurso escolar como qualquer outro jovem, até ao 12.º ano. Como o curso de Comunicação Social exigia "capacidade de visão", e não quis sair da sua área de conforto, tirou Português/Inglês na então Escola Superior de Educação de Leiria, decisão de que se arrepende. Nunca conseguiu colocação para dar aulas, pelo que trabalha como telefonista na Câmara da Marinha Grande.
Apesar de não gostar do curso, Sónia deu o seu melhor, porque não queria desiludir os pais, e acabou a licenciatura com média de 15 valores. Como nunca conseguiu emprego como professora, fez um estágio na Rádio Batalha, onde trabalhou três anos. "Era animadora, fazia produção de conteúdos, dava apoio à produção, fazia spots de rádio e até tive oportunidade de fazer algumas entrevistas", conta, orgulhosa.
"Mas estarem sempre a perguntar-me se sabia fazer isto ou aquilo deixava-me muito triste. Sentia que estava ali só por estar", lamenta Sónia, pelo que acabou por sair. "Temos de provar todos os dias que somos capazes e isso deixa-me muito insegura", confessa.
Mais tarde, fez outro estágio na Rádio Clube Marinhense e no Jornal da Marinha Grande. "Quando saiu a primeira peça com o meu nome, fiquei com uma lagrimita no olho", recorda, satisfeita pelo reconhecimento.
Contudo, a instabilidade financeira levou-a a mudar de vida. Uma das telefonistas da Autarquia ficou doente e Sónia foi substituí-la através de um Contrato Emprego-Inserção, de dois anos. Quando terminou, concorreu ao lugar e foi admitida. Quatro anos depois, não se sente realizada e diz estar subaproveitada. Mas encontrou um novo estímulo no mestrado em Comunicação Inclusiva, cuja parte letiva concluiu com média de 17 valores. "Gostava que fosse mais uma forma de mostrar ao Mundo que sou capaz."