Quem passa no Largo do Carmo, hoje uma praça pacata ladeada de restaurantes e espaços antigos resgatados por jovens, no coração de Lisboa, já não sabe ou quer perceber o que se passou ali há 47 anos. "Os anos vão passando e perde-se o interesse. Há uns anos quem vinha tomar café fazia perguntas, agora já não. Os mais jovens nem sabem o que aconteceu aqui", diz Paulo Pereira, 49 anos, proprietário da Leitaria Académica, um dos estabelecimentos mais antigos do largo, ali desde 1937.
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O comerciante considera que se podia ter feito mais para manter a memória de um dos locais-chave da Revolução dos Cravos. "Deveria haver mais indicações ou sinalização sobre o que aconteceu aqui", sugere. Rogério Soares, 58 anos, funcionário do restaurante Mar ao Carmo, concorda. "A revolução acabou aqui, mas muitos não o sabem. Às vezes ouço os motoristas dos tuk-tuk, que trazem cá turistas, a dizerem que começou aqui... Como é possível?", questiona-se indignado, enquanto observa o Quartel do Carmo onde Marcelo Caetano, último chefe do Estado Novo, se refugiou até se render a entregar o poder a António de Spínola, após o triunfo do Movimento das Forças Armadas.
Manuel Cassamá, 30 anos, também funcionário no Mar ao Carmo, sabe explicar vagamente o que foi o 25 de Abril. Já no quartel, para onde tem vista privilegiada diariamente, confessa, "ali nem sei o que aconteceu".
No ateliê "O Homem do Saco", o mais recente inquilino do Largo do Carmo, ali desde novembro, Ricardo Castro, 42 anos, relata os acontecimentos como se os tivesse vivido, mas sabe que é preciso "um esforço para manter viva a memória". "É uma obrigação transmitir o que aconteceu, mas é inevitável que o tempo dilua os acontecimentos", sublinha.
Memorial quase esquecido
Ao lado, a Sapataria do Carmo, desde 1904 no largo, é provavelmente a loja mais antiga. Pertenceu à mesma família durante três gerações até João Lourinho, 38 anos, e mais dois sócios resgatarem o espaço que estava condenado a encerrar, em 2012. "Se as paredes da sapataria falassem, contariam como foi aquela manhã. Acho que o 25 de Abril já não tem, contudo, tanto impacto nas gerações mais novas, como os meus filhos, que já nasceram num ambiente de liberdade e conforto".
Na Rua do Arsenal, local de confrontos entre as forças da Escola Prática de Cavalaria de Santarém e as do Regimento de Cavalaria 7 durante a manhã do 25 de Abril, o que resta da revolução é um memorial no chão por onde, pelo menos nos tempos anteriores à pandemia, passavam mais turistas com malas de viagem do que pessoas a parar para ver.
Há várias lojas de recordações, geridas por chineses ou indianos, alojamentos locais e hostels ou escritórios. O Rei do Bacalhau, ali desde 1948, é um dos poucos espaços que sobram para contar a história. E só ali se mantém porque o proprietário comprou o prédio.
O risco de não ter moradores
"Se não comprasse era despejado. Vim para aqui trabalhar em 1984, quando ainda havia moradores que assistiram ao 25 de Abril das janelas. Nessa manhã não deixaram o meu antigo patrão, que já faleceu, passar porque as tropas já estavam montadas", conta Fernando Dias, 57 anos. "Tenho a certeza que se perderá a memória, a saída de moradores também contribui para isso", lamenta.
Os tanques vistos da janela
Quem vive na Pontinha nem repara no quartel onde tudo começou e esteve instalado o comando das operações liderado por Otelo Saraiva de Carvalho. "Não fazia a mínima ideia que era aí", diz Débora Jorge, 34 anos. Já Cristiano Fernandes, 16 anos, tem a história na ponta da língua. "Sei que as ordens saíram daqui".
Os mais antigos não esquecem. "O que mais me impressionou naquela manhã foram os tanques, os canos passavam mesmo ao pé da minha janela", recorda José Azevedo, 83 anos, morador num prédio em frente ao Quartel da Pontinha. Maria Rodrigues, 82 anos, também se lembra bem. "Acordei com a marcha. Nunca tinha visto tanta gente na Pontinha. Havia muito povo".
Numa zona mais envelhecida da cidade, pouco mudou em 47 anos. "Havia mais quintas e há um restaurante ainda dessa altura. Surgiram cafés, mais comércio e prédios".