Programa de autoproteção, que foi atrasado pela pandemia, abrange 2233 aglomerados rurais. Faltam técnicos no terreno e meios financeiros. ANEPC e câmaras fazem avaliação.
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Três anos e meio após a criação do programa "Aldeia Segura, Pessoas Seguras", 2233 aglomerados rurais estão envolvidos em medidas de proteção contra o fogo, mas só 858 possuem planos de evacuação e muitas áreas prioritárias estão fora. A ordem é arregaçar as mangas: em 2030, sete mil devem estar abrangidas.
Criado em outubro de 2017 após os grandes incêndios de 17 de junho (66 vítimas mortais) e 15 de outubro (51 óbitos) - que evidenciaram os perigos da fuga sem segurança (75% ocorreram na estrada em Pedrógão Grande) e da envolvente florestal das aldeias (92% dos acidentes) -, o programa atingiu 1793 aldeias em 2018 e 1963 no seguinte.
O ímpeto foi travado pela pandemia de covid-19, mas a dinâmica regressou neste ano. Segundo dados da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) verificados ontem pelo JN, já há 2233 aldeias, com 2088 oficiais de segurança local, 1346 locais de abrigo e 1322 de refúgio.
Embora haja muitos aglomerados em áreas prioritárias de prevenção e segurança (APPS), constituídas pelas zonas nas classes alta e muito alta na carta de perigosidade de incêndio, são visíveis áreas a descoberto, por exemplo no Alto Minho ou no Alto Tâmega. Para 2030, a meta é de sete mil aldeias seguras, 90% das quais nas APPS. Em dezembro de 2020, um estudo do Observatório Técnico Independente, que funcionou até ao verão no Parlamento, já alertava que a distribuição estava "longe de ser a ideal" e que os critérios de seleção não seriam "os mais adequados".
provas dadas
Mas salientava que a iniciativa "vai ao encontro do que deve ser a primeira prioridade" da defesa e que as "aldeias seguras" afetadas pelos maiores incêndios de 2018 (Monchique), 2019 (Vila de Rei, Sertã e Mação) e 2020 (Proença-a-Nova) mostraram estar preparadas.
Em termos nacionais, apenas 23,2% das freguesias e 51,4% dos municípios estão envolvidos. Mesmo em distritos críticos, como Viana do Castelo, a adesão é baixa: só 4,3% das 208 freguesias têm aldeias seguras.
No topo está a Guarda, com 444 aglomerados, 125 dos quais na sede de distrito. Mas "ainda há trabalho árduo a fazer", diz o presidente da Câmara Municipal, Sérgio Costa. É necessária mais sensibilização e faltam oficiais de segurança local, megafones, planos de evacuação, pontos de refúgio.
São "muito positivos quanto às medidas de autoproteção", comenta o geógrafo José Bento Gonçalves, especialista da Universidade do Minho em proteção civil. Mas dependem muito da "dinâmica e da vontade dos autarcas", até porque os programas são de adesão voluntária, como salienta a ANEPC.
"É necessário reforçar esta dinâmica. A ANEPC está a fazer um inquérito para analisar dificuldades e resistências e decorrem trabalhos nas comissões regionais para preparar a seleção e priorização de aldeias", diz o presidente da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), Tiago Oliveira.
falta monitorização
Até hoje, as autarquias estão a responder a três dezenas de questões que vão da avaliação do programa, e designadamente sobre se a população está mais preparada para proteger-se, à forma de monitorização, passando pelos constrangimentos à aplicação local, como a falta de recursos financeiros.
Para Xavier Viegas, especialista da Universidade de Coimbra, faltam técnicos no terreno, "não se mobilizaram os recursos humanos e financeiros necessários" e "nem sempre correspondem a aldeias prioritárias ou tiveram em conta critérios de perigosidade".
Para Duarte Caldeira, investigador em proteção civil, o programa "dá capacitação às populações para o risco" e o número de aldeias é positivo, mas o de oficiais de segurança é insuficiente. E "falta monitorização global do programa, para se ter a certeza de que se mantém operativo, ou se o modelo se alterou".
"É importante o conforto do programa"
Oficiais de segurança local são peças essenciais na autodefesa coletiva mas atuam sob ordens da proteção civil
Carlos Rocha ficou aborrecido. No simulacro de incêndio, um camião-tanque dos bombeiros partiu a fachada da casa. A manobra na rua estreita e inclinada era arriscada. "Serviu para identificar mais um problema", comenta a coordenadora municipal da Proteção Civil, Adriana Teixeira. Não os faltam em Rebordelo, 58 habitantes, cercada de mata, uma única entrada.
Em Santa Maria da Feira, 56% do território florestado e contíguo aos dos cinco concelhos vizinhos, há 83 aglomerados em risco. Rebordelo é uma das 12 no programa "Aldeia Segura". Uma semana antes da nossa visita, os habitantes participaram num simulacro. Seguindo o percurso de evacuação sinalizado nas ruas, foram conduzidos para o refúgio coletivo - a capela.
Carlos Rocha, 73 anos, e Adão Carvalho, 62, são os oficiais de segurança local. Em caso de alerta, cabe-lhes percorrer a aldeia, megafone em punho, e dar as instruções do comandante de operações de socorro: permanecer em casa (portas e janelas fechadas), ou sair para o refúgio, ou preparar-se para a evacuação.
"É importante o conforto que o programa permite, que haja regras e as pessoas tenham consciência das suas obrigações", diz Adão.
Se vier o fogo, podem combater? "Não, só protegemos as pessoas. Por isso temos de saber que casas estão ocupadas, onde há acamados, pessoas de mobilidade reduzida, animais domésticos ou de companhia", explica.
João Oliveira, oficial de segurança de Alcafaz, Águeda, observa discretamente os movimentos de hóspedes que vão deixar o alojamento local. Tem de saber quantas pessoas se encontram no aglomerado de 12 fogos permanentes, quantas chegam ou partem.
"Em 2015, tinha um eucaliptal a arder a 100 metros de casa, temi pela vida", conta. A primeira tarefa com o "Aldeia Segura" foi conseguir abrir uma larga faixa de descontinuidade de combustível que separa a floresta da aldeia. Falta a outra metade, mas vai avançar.
O acaso de vale florido
Fala com orgulho do tanque de 100 mil litros de água no cimo da aldeia que alimenta seis mangueiras ("Podemos defender-nos do fogo fora e dentro da aldeia!") e no de 500 mil já prometido. "Estamos mais tranquilos".
Vale Florido, Ansião, 92 habitantes permanentes, uns 150 no verão, vive tranquila, rodeada essencialmente por campos, ao contrário de Mata de Baixo, com quatro casas e floresta próxima. Coube-lhe o acaso de ser a primeira "aldeia segura", devido à localização e às condições da Associação Cultural adequadas para a assinatura do protocolo entre o Governo e as associações de municípios e de freguesias.
Tesoureiro da associação, Silvério Teixeira, chefe da PSP aposentado, viu-se escolhido para oficial de segurança. Antes do megafone, o principal instrumento de alerta é o sino da capela "tocado a rebate como antigamente". Coube-lhe percorrer a aldeia a explicar o programa, participar na definição do percurso de evacuação, dar informações sobre medidas de proteção.
Conhece toda a gente, quem saiu para ir ao médico, ou está no moinho. Mostra a listagem precisa das casas ocupadas, devolutas ou de ocupação temporária, o seu roteiro para os avisos - "aguentem que ainda não é para sair, ou há ordem para evacuar", conta, ciente da responsabilidade, aliás voluntária. "Se for preciso fazer isto noutros lugares da freguesia, estou disponível".