Na medicina de precisão, os testes genéticos mostram as mutações do tumor e podem mostrar quais os tratamentos mais adequados a cada pessoa. Mais de 800 doentes foram alvo desta abordagem clínica no IPO do Porto.
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Começaram por ser dores de cabeça, que pareciam poder ser amenizadas por um qualquer comprimido. A confirmação de que algo não estaria bem veio quando a visão periférica “ficou esquisita”. Em outubro de 2022, Filipe Paixão recebeu o diagnóstico: “sete metástases cerebrais, uma delas com quatro centímetros”. “A origem era um cancro do pulmão”, diz ao JN. Fez um teste NGS, exame genético para detetar a mutação do cancro. O resultado mostrou que era elegível para uma terapia-alvo. Em Portugal, a medicina de precisão já mexe na área da oncologia. Mais de 800 doentes foram incluídos, desde 2021, no programa de medicina de precisão do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto.
A abordagem da medicina de precisão parte do pressuposto de que é necessário “chegar a um diagnóstico o mais preciso possível”, afirma o patologista Rui Caetano Oliveira. Por meio de biomarcadores, genes ou proteínas alteradas num determinado tumor, é possível ter “alvos terapêuticos direcionados” para cada doente, explica o também professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Desta forma, será possível “destruir a célula tumoral com maior eficácia e evitar grande parte dos efeitos da doença”, acrescenta.
Depois de uma cirurgia ao cérebro, Filipe Paixão, não fumador, soube que tinha cancro do pulmão com mutação EGFR (deleção do exão 19) no estádio IV. No início, a sua terapia-alvo consistiu em tomar diariamente um comprimido de Tagrisso (medicamento usado para tratamento do cancro do pulmão). Durante nove meses, não teve qualquer tipo de sintomas.
Última linha de tratamento
Hoje, toma o anticorpo amivantamab, faz “quimioterapia de manutenção” e está a ser acompanhado na Fundação Champalimaud, em Lisboa. No início da doença, Filipe Paixão foi atendido no Hospital Lusíadas, onde uma médica o aconselhou a fazer um teste genético para “melhor definir a terapia” ao invés de seguir para a “tradicional quimioterapia”. O acesso aos testes e aos tratamentos posteriores só foram possíveis porque tem um seguro de saúde. “Neste momento, estou a sofrer um bocadinho com os efeitos secundários [dos fármacos], mas consigo fazer a minha vida normal”, acrescenta.
“Muitos hospitais já tentam caracterizar molecularmente os tumores, mas ainda estamos longe de fazer o que precisamos ou queríamos”, afirma Rui Caetano Oliveira. O patologista reconhece que o setor privado em Portugal tem “mais vantagem” nas terapias de precisão, porque “tem acesso a tecnologias mais avançadas”. Porém, o docente universitário refere que o IPO do Porto, parte integrante do SNS, é “o mais avançado” com o programa de medicina de precisão.
Desde o início de 2021, mais de 800 doentes estiveram envolvidos no programa de medicina de precisão da unidade de saúde da região Norte. “Funciona como um estudo clínico, que permanentemente faz o recrutamento de doentes para o programa e simultaneamente permite analisar ao longo do tempo os resultados”, explica Rui Henrique, diretor do serviço de anatomia patológica do IPO do Porto. Os doentes elegíveis são aqueles que “chegaram à sua última linha de tratamento e não têm qualquer outro tipo de terapêutica aprovada ou reconhecida como eficaz”.
Seleção criteriosa
A seleção dos pacientes para a medicina de precisão é criteriosa, uma vez que nem todos poderão ter as condições físicas para integrar o programa. “Algumas das terapêuticas têm os seus riscos. Um doente com uma debilidade bastante acentuada no seu estado de saúde devido ao tumor não pode ser incluído”, diz Rui Henrique. Geralmente, a terapia-alvo consiste numa resposta farmacológica, isto é, passa pela toma de medicamentos. Mas, pode haver a necessidade de “complementar com outras terapias”, como a radioterapia ou radiofármacos, explica o clínico do IPO do Porto.
“A medicina de precisão é seguramente um aliado valioso e vai permitir, na maioria das vezes, uma melhoria dos tratamentos, com menores efeitos secundários e menores danos para os doentes”, afirma Rui Caetano Oliveira. Porém, o patologista avisa que os testes genéticos podem concluir que as mutações existentes num determinado tipo de tumor não “têm alvos terapêuticos”. “Estamos sempre a aprender e há coisas para as quais ainda não temos a certeza”, justifica. Rui Henrique corrobora e diz que, nos programas de medicina de precisão, a “proporção de doentes nos quais se encontra uma alteração que é passível de ser utilizada terapeuticamente é à volta de 15%”.
Filipe Paixão está de baixa há três anos. “Em outubro de 2022, a minha vida mudou completamente. Tentei passar mais tempo com a minha filha, porque honestamente eu não pensei que durasse tanto tempo”, afirma. Tem documentado a sua história num site da Internet chamado “Um dia de cada vez”. Ao JN, defende que todos os doentes deveriam fazer “testes genéticos”, de forma a saberem se são elegíveis para terapias-alvo e lamenta que Portugal ainda não tem avançado com os rastreios para o cancro do pulmão.
Mortalidade
O cancro do pulmão é o que mais mata em Portugal, segundo o Registo Oncológico Nacional. Em 2021 foi responsável por cerca de 4400 mortes. Os tumores mais frequentes são o da mama, da próstata e o do pulmão.
Benefícios
De acordo com Rui Henrique, a medicina de precisão poderá provocar menos toxicidade, permitir a regressão ou o controlo da doença oncológica e uma melhor qualidade de vida.
Descentralizar o acesso
O IPO do Porto está envolvido num projeto de âmbito europeu que propõe criar uma infraestrutura compreensiva de cancro, no Norte, focada na área da medicina de precisão. O objetivo é formar uma “rede” que permite que os doentes da região possam ter acesso a terapias-alvo, sem necessidade de se deslocarem até ao Porto. “É uma forma de descentralizar este tipo de oportunidade”, afirma Rui Henrique. As unidades de saúde parceiras são a Unidade Local de Saúde (ULS) do Alto Ave, a ULS de Braga e a ULS de Gaia e Espinho. Contudo, o diretor do serviço de anatomia patológica do IPO do Porto admite que mais hospitais se possam juntar ao projeto.