A Ordem dos Médicos diz que a nova lei da violência obstétrica "é tecnicamente mal concebida" e pode comprometer decisões clínicas. A Ordem dos Enfermeiros teme um "clima de medo" e práticas clínicas defensivas que não favorecem a qualidade dos cuidados. Ambas querem revisão do diploma.
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Publicada em Diário da República a 31 de março, a lei 33/2025 visa combater a violência obstétrica e proteger os direitos na gravidez e no parto, fazendo alterações à lei 15/ 2014 sobre direitos e deveres dos utentes dos serviços de saúde. Resulta de dois projetos lei, do Bloco de Esquerda e do PAN, discutidos na COmissão de Saúde e foi aprovada com os votos a favor do PS, PCP, BE, Livre e PAN. O PSD e o CDS/PP votaram contra e o Chega e a IL abstiveram-se.
Uma das partes mais polémicas do texto é a determinação de penalizações aos hospitais e aos profissionais de saúde que realizem "episiotomias de rotina [corte nos tecidos vaginais durante o parto] e outras práticas reiteradas não justificadas".
Segundo a nova lei, estas práticas são objeto de "penalizações no financiamento e sanções pecuniárias a aplicar aos hospitais, sempre que desrespeitem as recomendações da Organização Mundial de Saúde e os parâmetros definidos pela Direção-Geral da Saúde" e de um inquérito disciplinar aos profissionais de saúde.
As duas ordens profissionais lamentam não ter sido ouvidas. Segundo a Ordem dos Médicos (OM), também não foram consultadas sociedades científicas, colégios de especialidades ou sociedade civil. "A iniciativa legislativa foi tomada à margem de qualquer diálogo institucional ou científico", diz a Ordem dos Médicos, considerando que tal "constitui um erro grave e desadequado pelo despropósito e profundo desconhecimento demonstrado".
Num comunicado, a OM afirma que "a lei, tal como está redigida, é tecnicamente mal concebida e não é baseada em evidência científica". Além disso, "estigmatiza o trabalho médico, desrespeita a sua autonomia técnica e incentiva uma prática defensiva que poderá comprometer a tomada de decisões clínicas em benefício da saúde da mulher e da criança".
Ao longo dos próximos meses, a OM vai promover iniciativas de discussão sobre o tema, envolvendo peritos e profissionais no terreno, com o objetivo de contribuir para a revisão da legislação.
Fragilidades técnicas
A Ordem dos Enfermeiros "reconhece o valor simbólico e político da lei", mas "uma boa intenção não pode ser concretizada sem ouvir quem está no terreno". Resultado: "a redação da lei apresenta, desde logo, fragilidades técnicas e conceptuais que colocam em risco não só a sua eficácia prática, mas também a segurança e a dignidade dos profissionais de saúde".
Por outro lado, afirma, o conceito de “violência obstétrica” tal como está definido na lei, inspirado em legislação estrangeira sem o devido enquadramento técnico e científico português, "é excessivamente vago".
Assim, "a falta de critérios técnicos claros pode dar origem a interpretações subjetivas, mesmo quando os profissionais agem de forma ética e segura".
E "a consequência será um clima de medo, com implicações na relação com as utentes e práticas clínicas defensivas que não favorecem a qualidade dos cuidados", afirma o bastonário Luís Filipe Barreira, citado num comunicado.
Acrescentando que a mesma questão aplica-se à erradicação da episiotomia de rotina. "A OE rejeita quaisquer práticas sem base científica, mas lembra que o conceito de 'rotina' precisa de ser claramente definido. Sem isso, correm-se riscos reais de penalizar decisões clínicas justificadas e partilhadas com a mulher, prejudicando a segurança e a confiança nos profissionais".
Para a OE também é inadequada a substituição do termo “plano de parto” por “plano de nascimento”. Esta alteração linguística afasta-se de uma abordagem centrada na mulher e no seu corpo, esvaziando o seu protagonismo e contrariando os próprios princípios da autodeterminação e da dignidade que a lei declara defender, refere a Ordem, manifestando-se disponível para participar na revisão e melhoria da lei.