Má comunicação entre clínicos e pacientes agrava riscos nas doenças "silenciosas".
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A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 50% dos doentes deixe de tomar o tratamento prescrito pelo médico, normalmente ao final de um ano. Em Portugal, "a realidade é muito semelhante", esclarece Vitória Cunha, médica e secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Hipertensão Arterial. "O que sabemos ao certo é que, após a primeira semana, 10% dos doentes deixam de tomar a medicação tal e qual ela foi prescrita pelo médico", acrescenta Ema Paulino, presidente da Associação Nacional de Farmácias e membro do Comité Executivo da Federação Internacional Farmacêutica.
Joana (nome fictício) comprou na farmácia o medicamento prescrito pelo médico. Na caixa estava escrito: "Tomar 1/2 (meio) por dia". Quando regressou à consulta, para avaliar a evolução da doença, o médico perguntou-lhe: "Está a tomar os medicamentos como indiquei?". Joana respondeu: "Sim. Num dia tomo um e no outro dois, como está escrito na caixa".
O episódio, relatado ao JN por Eugénia Raimundo, psicóloga na área social, é verdadeiro e exemplifica um dos grandes problemas da chamada adesão ao tratamento (ver caixa): a comunicação, ou a falta dela, entre médico e doente.
A questão é especialmente relevante nos casos das doenças silenciosas, como a hipertensão e as cardiovasculares, que têm elevadas taxas de mortalidade. E agravou-se com a pandemia: milhares de consultas ficaram para trás e o medo travou a ida aos hospitais.
objetivos por consulta
Mas como pode o médico evitar o abandono precoce da medicação pelo doente? "O médico tem que empoderar o paciente, autorresponsabilizando-o", assinala Eugénia Raimundo. "Ninguém se compromete com a adesão, se não conhecer os riscos da sua doença". Vitória Cunha acrescenta: "Há uma inércia mútua. O médico diz que não tem tempo para consultar como devia; e o doente diz que não cumpre, porque não percebeu o que lhe foi dito".
É, por isso, que, aponta Eugénia Raimundo, é fundamental definir uma estratégia que "permita definir objetivos por consulta". "O problema da hipertensão, por exemplo, é demasiado complexo para que tudo possa ser abordado numa só consulta. Se isso acontecer, o doente sairá ainda mais confuso - e isso é um passo rumo ao abandono da medicação", explica.
"A relação de confiança entre médico e doente é decisiva. Ao longo do tempo, vamos ganhando uma espécie de sexto sentido que nos permite perceber se o doente está a mentir. Mas é fundamental partilhar de forma empática as causas e os riscos da doença", refere Vitória Cunha. Eugénia Raimundo segue-a na preocupação. "O feedback contínuo da evolução da patologia e da eficácia do tratamento é muito importante. Não basta dizer ao doente que o problema está controlado. O doente tem que estar consciente das evoluções, positivas ou negativas. Comunicar não é a mesma coisa que informar".
O que é?
Adesão ao tratamento
A adesão ao tratamento dá-se quando o comportamento do doente coincide com as orientações do médico para controlar ou curar a sua doença. Mas nem sempre isso acontece. Segundo a Organização Mundial de Saúde, menos de 60% dos doentes com diabetes e menos de 40% dos doentes hipertensos seguem as prescrições, por exemplo.
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As causas
A questão do abandono da medicação é complexa. Não se trata somente de seguir o que foi indicado pelo médico: há fatores socioeconómicos, como os baixos rendimentos e a iliteracia, que dificultam a compreensão sobre os benefícios da toma correta dos medicamentos por parte de muitos pacientes.
Os efeitos
A toma incorreta ou o abandono da medicação podem ser fatais. Há, desde logo, o risco de o problema de saúde não ter sido resolvido. No caso de tratamentos cardiovasculares, a não adesão potencia a mortalidade.