Enfermeiros, médicos e agora também os farmacêuticos avisam para casos que ameaçam qualidade e segurança dos cuidados prestados.<br/>
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Há cada vez mais enfermeiros e médicos e agora também farmacêuticos hospitalares a entregarem pedidos de escusa de responsabilidade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). São milhares de declarações apresentadas desde o início do ano que alertam para a falta de recursos humanos e outras condições que permitam garantir a qualidade e a segurança dos cuidados prestados. É mais um sinal vermelho de um SNS em dificuldades, cuja face mais visível são as urgências de obstetrícia fechadas por falta de médicos.
A "moda" das escusas de responsabilidade é recente. Nos enfermeiros começou em 2020, mas a atividade intensificou-se em 2021. Em novembro do ano passado, a Ordem dos Enfermeiros (OE) tinha recebido 1300 pedidos. No final de fevereiro deste ano já eram 4 475 e este mês totalizavam 5 567 acumulados (cada profissional pode apresentar escusa várias vezes). O Hospital de Leiria é o campeão das escusas dos enfermeiros, somando 3120 pedidos entregues na OE. Na região sul, com um total de 1522 escusas, os hospitais do Algarve, Amadora-Sintra e Setúbal são os que enfrentam as situações mais graves. Em regra, as declarações são feitas porque há falta de enfermeiros para assegurar a prestação de cuidados aos doentes em segurança.
Entre os médicos, os números não são tão expressivos, mas pecam por defeito porque nem todas as declarações chegam ao conhecimento do bastonário da Ordem dos Médicos (OM). Ainda assim, mostram uma tendência crescente nos últimos anos. Em 2020 foram 409 e, em 2021, houve 587 pedidos. Desde janeiro até ao início do mês, já foram apresentadas 230 escusas, revela a OM.
Estreia dos farmacêuticos
Este mês, os farmacêuticos hospitalares estrearam a utilização daquele instrumento que serve, acima de tudo, como um "grito de alerta". Primeiro, foram os farmacêuticos do Centro Hospitalar e Universitário do Porto, depois os do IPO do Porto.
A Ordem dos Farmacêuticos (OF) está solidária e teme que a situação alastre a outras instituições do país. "São profissionais que estão a trabalhar no limite, o que aumenta o risco de erro", garante o presidente da secção regional do Norte da OF. Félix Carvalho diz que a falta de recursos humanos, mas também as más condições dos locais de trabalho, são as razões destas escusas numa área de "enorme responsabilidade", como é a preparação dos medicamentos para os doentes.
No casos dos médicos, a maioria dos pedidos foram feitos em hospitais e centros de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Em 2020 foram 267; em 2021, 412; e de janeiro a junho deste ano houve 148 escusas. A região Norte registou 130 pedidos em 2020, 135 em 2021 e 40 nos primeiros cinco meses de 2022. O Algarve, que em 2021 apresentou apenas uma escusa (um médico de ortopedia do Hospital de Faro), passou para seis em 2021 e já vai em 18 em 2022.
Face à conjuntura na Saúde, não é de espantar que os especialistas com mais pedidos apresentados este ano sejam os internistas. A Medicina Interna é a especialidade mais presente nas urgências hospitalares, onde as carências são mais graves. Em Lisboa e Vale do Tejo, aqueles especialistas fizeram 43 pedidos de escusa e na região Centro fizeram 12 (de um total de 24). No Norte, a especialidade com mais pedidos de escusa foi a pediatria (20 de 40) e no Algarve foi a psiquiatria (11).
Pormenores
O que são escusas de responsabilidade?
São declarações que os profissionais de saúde preenchem e enviam para as administrações dos hospitais e respetivas ordens, nas quais recusam em determinados momentos incorrer em responsabilidade porque consideram que não têm as condições necessárias para garantir a qualidade e segurança dos cuidados ao doente.
Declarações não chegam para proteger no tribunal
Escusas podem ter mais relevância em processos disciplinares.
Os pedidos de escusa de responsabilidade são por vezes anunciados como forma de os profissionais de saúde se protegerem de eventuais processos disciplinares ou de responsabilidade civil e criminal. Mas até que ponto valem estas declarações?
Quando estão em causa processos disciplinares, instaurados pelos hospitais ou ordem profissional, estas escusas podem "ter grande relevância", refere a advogada Filomena Girão, com experiência na área de Direito da Saúde. Mas é importante que "sejam bastante específicas, identificando não só o profissional, como também o estabelecimento/ departamento/ serviço de saúde e o exato problema (riscos, consequências e duração) que dá causa a cada declaração".
Por si só não é suficiente
No entanto, realça a sócia da FAF Advogados, esta declaração "por si só não exclui a responsabilidade individual penal ou civil por uma eventual atuação, dolosa ou negligente, violadora das legis artis". Filomena Girão lembra que aquela declaração é unilateral - ninguém no hospital defere o pedido ou atesta os problemas denunciados - e que os lesados, em regra os utentes, desconhecem a sua existência e teor.
Ainda assim, nota a advogada, "aquela declaração terá sempre o mérito de auxiliar a circunstanciar a atuação do profissional de saúde e, por tal, deverá ser apreciada pelas entidades competentes"- hospitais, ordens e tribunais, consoante esteja em causa um processo disciplinar, penal ou civil - para aferir se as razões que fundamentaram a escusa contribuíram para a atuação de que o profissional estiver acusado e para os danos que daí resultaram.