Trotinetas e mais trotinetas, ciclovias, e carros elétricos silenciosos são sinais de modernidade que saltam à vista nas cidades portuguesas e mundiais. Mas os benefícios do progresso também têm o reverso da medalha, nomeadamente para os deficientes visuais, que acabam por ter de enfrentar ainda mais obstáculos nas suas rotinas.
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Com a destreza de quem há muito se habituou a recorrer a "alguns artifícios e manobras mais imaginativas" para enfrentar a azáfama do dia a dia, Marta Pinheiro, 38 anos, é mais forte do que o glaucoma congénito que lhe tirou a visão. E, como muitas mulheres, concilia a maternidade com o trabalho. No percurso entre Guimarães e o Pingo Doce de Vizela, onde trabalha como administrativa, Marta demora, em média, uma hora. Isto porque tem de apanhar dois autocarros e, ainda, fazer um percurso de cerca de 10 minutos a pé. Um caminho que podia ser encurtado, mas que, no seu caso não é possível.
"Há uma alternativa, que demora cerca de metade do tempo, mas implica passar pelo parque de estacionamento e para mim não é nada acessível, porque tenho de ir pelo meio dos carros". E isso, assegura, é algo a que só se atreve quando, "de longe a longe", os colegas saem à mesma hora e a acompanham. Porque "sozinha não dá mesmo", diz.
Habituada a andar "em contrarrelógio", Marta diz que, ainda assim, o percurso que faz todos os dias "não é muito difícil". E o que custou mais foi no início. Além de ser o período de adaptação, os primeiros meses foram mais complicados "principalmente porque a estrada não tinha passeios". Passado algum tempo, estes surgiram, "facilitando muito o percurso". Mas, com eles, vieram também os obstáculos que Marta aprendeu a contornar.
Muitas vezes, temos que ir para o meio da estrada, correndo o risco de alguém não nos ver e sermos atropelados
Entre os vários "imprevistos", a administrativa destaca "o número de pessoas que continua a estacionar os carros em cima dos passeios", sem se aperceber do risco que pode significar para os deficientes visuais. "Temos que nos desviar, mas nem sempre para sítios seguros. Porque, muitas vezes, temos que ir para o meio da estrada, correndo o risco de alguém não nos ver e sermos atropelados", explica, salientando que a mesma falta de civismo acontece quando os condutores ocupam os lugares de estacionamento reservados às pessoas com deficiência. Comportamentos que, apesar de tudo, Marta diz estarem a melhorar, "principalmente desde que entrou em vigor o regime de pontos nas cartas de condução".
Tomé Coelho, presidente da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), alerta que "não é por se falar em inclusão que a inclusão acontece". Salientando que é preciso continuar "a sensibilizar a população" para as questões da deficiência visual, o representante diz que "hoje fala-se muito em acessibilidades e em direitos, mas, se isso interferir de algum modo com a vida das pessoas, elas não cedem". Daí, não abdicarem, por exemplo, "de deixar o carro à porta". Além disso, para tornar as cidades inclusivas, "é preciso vontade política para legislar e isso depende de todas as entidades que intervêm na regulação do espaço público, do tráfego e do mobiliário urbano", reitera.
Obstáculos dos tempos modernos
A viver em Guimarães e a trabalhar em Vizela, Marta acaba por não sentir tanto as dificuldades dos deficientes visuais que todos os dias se movimentam em cidades como Porto ou Lisboa. Ainda assim, conhece-as de cor. Mais habituado aos obstáculos dos tempos modernos está Tomé Coelho, que alerta para a necessidade de os organismos políticos tomarem medidas. "Toda a gente fala das trotinetas que estão espalhadas pela cidade de Lisboa. E para os deficientes visuais elas são uma autêntica praga", sublinha o representante da ACAPO, que alerta, ainda, para "a moda dos carros elétricos", que, sendo silenciosos, constituem "um perigo" para os cegos. E juntam-se, ainda, as ciclovias, onde as bicicletas surgem sem que os deficientes visuais consigam perceber que aquela parte já não é apenas destinada aos peões.
Ainda assim, a ACAPO diz que tem havido alguma evolução e que as cidades "estão mais acessíveis". Tomé Coelho destaca "a Lei de Quotas, que obriga as empresas a admitirem 2% de pessoas com incapacidade" e "a criação da prestação social para a inclusão".
Mulher determinada, Marta sublinha, por seu lado: "As coisas têm melhorado. Não tão rápido como seria desejável, mas estão a melhorar. E conforme os meios que temos e a nossa imaginação, vamo-nos adaptando"