Morte de mães no parto atinge nível mais alto dos últimos 38 anos. DGS investiga
A taxa de mortalidade materna atingiu, em 2020, os 20,1 óbitos por 100 mil nascimentos. É preciso recuar 38 anos para encontrar valor superior. Foram 17 as mulheres que morreram devido a complicações da gravidez, parto e puerpério. Óbitos que a Direção-Geral da Saúde (DGS) está já a investigar, tendo criado uma comissão multidisciplinar para estudar as mortes maternas.
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Analisando as séries do Instituto Nacional de Estatística (INE), uma taxa superior foi registada em 1982, de 22,5 óbitos por 100 mil nados-vivos (ver infografia). Para Diogo Ayres-de-Campos, diretor do departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, estamos perante "um problema que tem de se encarar com seriedade" (ler entrevista).
A própria DGS, como revela em resposta por escrito ao JN, "já constituiu uma comissão multidisciplinar de acompanhamento para estudar e acompanhar as mortes maternas". Mas também a morbilidade materna grave. Numa equipa composta por "peritos de várias áreas, nomeadamente obstetrícia, medicina interna, anestesiologia, entre outros".
Sublinhando que estes indicadores devem ser analisados em séries temporais, "preferencialmente cinco a dez anos", a autoridade nacional de saúde adianta que "as mortes maternas de 2020 estão a ser investigadas, pelo que se deverá aguardar pela análise dos peritos sobre esta matéria".
Posição corroborada por Diogo Ayres-de-Campos, que integra a Comissão de Acompanhamento da Mortalidade Materna. Se é visível uma "degradação dos cuidados obstétricos", o aumento da idade da gravidez e de grávidas "com patologia", o certo é que "tem de se investigar cada uma das situações". Como foi feito pela task force criada para analisar os óbitos maternos de 2017 e de 2018.
Das mortes maternas registadas em 2020, a DGS adianta que "oito aconteceram durante a gravidez, uma durante o parto e oito no puerpério (até 42 dias após o parto)". Quanto ao local do óbito, 13 "ocorreram em instituições de saúde". Por se tratar dos primeiros dados em ano pandémico, INE e DGS esclarecem que todos os óbitos têm como causa complicações da gravidez, parto e puerpério.
Duas mortes tardias
As causas de morte em 2020, disponibilizadas recentemente pelo INE, dão conta de 19 mortes naquele ano. Segundo a DGS, os outros dois óbitos "ocorreram entre os 43 dias e um ano após o parto". Sendo que Portugal, explica, guia-se pela definição da Organização Mundial de Saúde - "morte de uma mulher enquanto grávida ou até 42 dias após o termo da gravidez". As outras duas mortes ocorreram entre os 43 dias e um ano após o parto, ambas em instituições de saúde.
Os dados do INE relativos aos 19 óbitos dizem-nos que nove ocorreram na faixa etária dos 35-44 anos, oito entre os 25-34, um entre os 16-24 e outro entre os 55-64. Com o Norte e a Área Metropolitana de Lisboa a registarem seis óbitos cada, a Região Centro cinco e o Alentejo dois. Refira-se que não há óbitos de residentes no estrangeiro.
A DGS adianta que, "desde o início deste ano, foi atribuída prioridade de codificação às mortes maternas, para que o processo de investigação através de um inquérito epidemiológico possa ser o mais célere possível para garantir maior qualidade da informação necessária ao estudo e investigação do fenómeno". Estando, ainda, a "ser estudada a forma de vir a implementar, no futuro, um instrumento de monitorização dos episódios de "morbilidade materna grave"".
Processo "complexo" que se pretende "automatizar"
A DGS explica que os processos de investigação em curso "são necessariamente retrospetivos e ainda dependentes de um processo complexo de recolha e análise de informação, através de inquérito epidemiológico de cada morte preenchido pelas várias unidades de saúde". Processo que a autoridade de saúde "pretende agilizar e automatizar num futuro próximo para permitir estudar estes eventos no menor espaço de tempo possível".
A saber
Definição da OMS
A Direção-Geral da Saúde segue as recomendações da Organização Mundial de Saúde, segundo a qual morte materna é a "morte de uma mulher enquanto grávida ou até 42 dias após o termo da gravidez". De acordo com esta definição, foram 17 os óbitos em 2020. Há mais dois que ocorreram entre os 43 dias e um ano, naquilo que se define como mortalidade materna tardia.
Codificação múltipla
Desde 2019 que as mortes maternas são alvo de codificação múltipla: "Além da atribuição do código de causa básica, estão a ser atribuídos os códigos de morbilidades identificadas no certificado de óbito".
Entrevista
"É um problema que tem de se encarar com seriedade", frisa Diogo Ayres-de-Campos, diretor do departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Os cuidados obstétricos, que se degradaram, têm de ser "repensados".
A mortalidade está a subir desde 2017. Podemos falar em tendência?
Quando foi criada a comissão [para estudar os óbitos de 2017/18], cujo relatório não foi publicado, dissemos que um ano, dois anos não fazia muito sentido para ver se tínhamos uma tendência. Mas é evidente neste momento. É um problema que tem de se encarar com seriedade. É evidente aos olhos de toda a gente.
Como se explica?
As causas são múltiplas. Algumas serão de degradação dos cuidados de saúde, outras por mulheres com patologia mais grave. Constatamos, por experiência no hospital, que está a 10 minutos do aeroporto, que vêm imensas grávidas de países africanos, às vezes em situações muito complicadas. A idade da gravidez tem vindo a aumentar, há mais grávidas com patologia, mas tem de se investigar cada uma das situações.
Temos 20,1 óbitos por 100 mil nascimentos, o que não acontecia desde 1982. Década da criação do programa de saúde materno-infantil. Que leitura faz?
Na altura, nos finais dos anos 80 e início dos 90, havia uma visão muito clara e pessoas com capacidade para concretizar essa visão de organização dos serviços obstétricos. Mas, depois, dá ideia de que ficamos um bocadinho a gozar os louros desses resultados sem ter feito um grande esforço. É preciso continuar a evoluir e não ficar parado.
Em que sentido?
Um clima de degradação das condições de empregabilidade que levou os cuidados obstétricos em Portugal, nos últimos anos, a estarem sob muita pressão. Não há posição clara em relação aos órgãos de direção nacionais, técnicos e políticos sobre a evolução dos cuidados obstétricos. É a ausência de política que tem levado à degradação dos cuidados obstétricos.
O que preconiza?
Precisamos de repensar a forma como estão organizados os cuidados obstétricos. Temos imensas urgências em obstetrícia, mas que não são verdadeiras urgências, fazendo com que os profissionais de saúde que atendem falsas urgências não estejam disponíveis para outras coisas e a qualidade dos cuidados em situações de urgência reflete-se. Há hospitais que veem 150 pessoas por dia na Urgência.