Surto em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim terminou com 15 mortos. Inquérito continua no DIAP.
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O pai de Raquel morreu, o de Renata não voltou a andar, Luís Mendanha nunca mais foi o mesmo. São três das 88 vítimas do surto de legionela que, em outubro e novembro de 2020, atingiu Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim. Dois anos depois, o inquérito continua no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto. Nenhuma origem, nenhum culpado. Morreram 15 pessoas.
"É uma vergonha. Passaram dois anos e nada", atira Raquel Ferreira. O pai, Joaquim Ferreira, foi ao médico "pelo próprio pé, a uma consulta de rotina", ao Hospital Pedro Hispano, a 23 de outubro. Com a pandemia em força, não saiu mais de casa. Seis dias depois, acordou "sem forças". À tarde, febre e falta de ar. Foi internado. Morreu uma semana depois. Tinha 85 anos e foi o "paciente zero" do surto.
Desde então, Raquel sabe "pouco ou nada". Em dois anos, recebeu um telefonema: da delegação de saúde, aquando do diagnóstico do pai, a perguntar "se tinha ar condicionado e água canalizada e como limpava a casa de banho". Nunca foi ouvida. Garante que vai até às últimas consequências: "Não traz o meu pai de volta, mas não podem morrer 15 pessoas e a culpa não ser de ninguém".
Dois anos depois, o inquérito do Ministério Público ainda não terminou. E já há quem se tenha cansado de lutar por justiça, como Renata Martins. O pai, José Silva, de 74 anos, foi um dos 88 infetados. Esteve dez meses internado. Nunca mais andou sem apoio. Tiveram que vender o apartamento, num 2.º andar sem elevador, adaptar a nova casa. O "olhar vazio" de José parte-lhe o coração. "Morreram 15 pessoas. Há gente com sequelas graves. É uma revolta muito grande", admite. Ainda assim, a pedido do pai, desistiu do processo. "Íamos andar anos no tribunal, a gastar dinheiro, provavelmente para nada", remata, conformada.
Falta de recursos
Catorze dias após o surgimento do primeiro caso, já com cerca de 50 infetados e duas torres de refrigeração encerradas (Ramirez e Longa Vida), o Ministério Público anunciou a abertura de um inquérito "destinado a investigar as causas do surto". A 19 de dezembro, o JN noticiava: as torres de refrigeração de várias empresas foram limpas antes da chegada das autoridades de saúde. Já em janeiro, no Parlamento, um responsável da Unidade Local de Saúde de Matosinhos disse que, a braços com a pandemia, tinha "falta de técnicos" para fazer inspeções e inquéritos epidemiológicos. A ARS/Norte, ao contrário do que aconteceu em 2014, em Vila Franca de Xira, nunca pediu colaboração à Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) e não aceitou a ajuda dos municípios. Agora, recusa falar sobre um processo em investigação.
Lei e fiscalização
Na sequência do surto em Vila Franca de Xira, foi publicada a Lei 52/2018, que estabelece o regime de prevenção e controlo da doença dos legionários. Mas só a 19 de janeiro de 2021 - já depois do surto no Norte - foi publicada a portaria que dá corpo à lei, classificando o risco e estabelecendo a periodicidade das auditorias. O advogado de oito vítimas, António Archer, não tem dúvidas: "Se a portaria estivesse publicada, este surto tinha sido evitado".
A IGAMAOT fiscaliza. Só neste ano fez 575 inspeções. Entre 2020 e 2021, foram 1500. Em nenhuma foi detetada legionela.
SABER MAIS
Quando surgiu o primeiro caso?
A 29 de outubro de 2020. Uma semana depois, o paciente morreu no Hospital Pedro Hispano.
O que tinham em comum os infetados?
O facto de viverem na zona Norte de Matosinhos ou terem passado por ali a caminho de consultas hospitalares.
Quando começaram as colheitas das delegações de saúde?
A 9 de novembro. Nessa altura, eram já mais de 40 os infetados nos três concelhos. Inspecionaram-se fábricas, centros comerciais e hospitais.
Foi encontrada legionela?
Sim. As torres de refrigeração das fábricas Ramirez e Longa Vida deram positivo. Numa análise mais fina, só a Longa Vida tinha, de facto, a bactéria. Porém, os genótipos de legionela recolhidos em pacientes não correspondiam aos da Longa Vida.
Quantos mortos?
Entre 29 de outubro e 29 de novembro, foram detetados 88 casos. Em janeiro, a ARS/Norte dava o surto como extinto e fechava as contas: 88 infetados, 15 mortos. A 17 de fevereiro, no Parlamento, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, atualizava os óbitos: afinal, eram só nove. Dos restantes seis, dois tinham covid-19 (a causa de morte) e quatro "outras patologias graves em fase avançada".