Polícias regressadas recentemente a Portugal recordam experiências "enriquecedoras".
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Isabel Canelas, 50 anos, foi a única mulher entre dez intendentes e coronéis destacados para uma missão da Organização das Nações Unidas (ONU) na Colômbia. Carla Dias, 56 anos, cumpriu, na década de 1990, duas comissões no território da Bósnia, mas foi recentemente, no Sudão do Sul, que notou maior proximidade entre o número de homens e mulheres no contingente policial internacional ali presente. Entre estas, estava Carla Miranda, 46 anos, estreante e por quem chegaram a oferecer cem vacas para casar.
Em 28 anos, somente 8% das presenças da PSP em missões de paz e similares da ONU foram de mulheres - uma percentagem que corresponde à proporção de elementos femininos naquela força de segurança.
No último dia 31, assinalaram-se duas décadas desde que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução a incentivar os estados a envolver mais mulheres em missões de paz. O objetivo da organização é que, em 2030, 30% dos elementos de contingentes policiais internacionais em missões de paz sejam do sexo feminino. Atualmente, são 10,9%. Em 2000, não iam além de 1%.
As mulheres lá, para os homens, não valem nada
Carla Miranda, agente principal da PSP no Núcleo de Armas e Explosivos do Comando do Porto, esperou uma década para ser chamada para desempenhar funções numa missão de paz. Em setembro do ano passado, chegou a Malacal, no Sudão do Sul. Um ano depois, a portuguesa, de 43 anos, e dois polícias da Jordânia e do Ruanda deixaram, naquele que é um dos países mais pobres do Mundo, a base para um inovador gabinete de apoio à vítima.
"Achámos que era muito importante as mulheres [de Malacal] terem um sítio onde pudessem ir e falar com outras mulheres na sua língua, o árabe", sustenta, ao JN, Miranda, que ocupou a posição de elo de ligação entre a cidade e a missão e para a igualdade de género. "A mulher lá é muito desvalorizada: fazem tudo, mas, para os homens não valem nada", desabafa. Apesar disso, nunca foi maltratada por ser do sexo feminino.
"Por sermos estrangeiros, sempre foram muito simpáticos, cordiais e muito respeitadores. Nunca tive nenhum problema por ser mulher, ao contrário da mulher lá, que vale zero", conta. O que não quer dizer que a sua presença não tenha causado estranheza e até algumas situações caricatas. Até porque, salienta, a função das mulheres-polícia locais é apenas "servir cafés".
Uma vez, por exemplo, ofereceram 100 cabeças de gado para casar consigo. O valor explica-se pelo facto de ter estudado. Acharam, igualmente, inusitado "ver uma mulher a conduzir". Já o comandante local preferia, ao início, dirigir-se aos seus colegas ruandês e jordano, em particular este último, por falar árabe.
"Passadas umas semanas já falava também comigo e com o colega do Ruanda. Foi tudo muito pacífico. Da nossa parte, mulheres, nunca houve ninguém que se queixasse da diferença de tratamento. As mulheres lá é outra história", sublinha.
"Nunca pensei ver o nível de pobreza que vi. Comparado com aquilo, nós estamos no céu. Encara-se a realidade de outra forma. Foi uma experiência muito enriquecedora", remata.
O nosso serviço não diferia do do homem: era igual
Carla Dias, polícia desde 1985, nunca tinha estado em África. Até que, em setembro de 2019, chegou ao Sudão do Sul, para, durante um ano, desempenhar funções, no âmbito da ONU, num campo de refugiados perto do rio Nilo. O que encontrou no país criado em 2011 e que, durante mais de seis anos, viveu em guerra civil, marcou-a. "Vi bebés a tomar conta de bebés", conta, certa de que, naquela região, faz a diferença ter mulheres-polícia nas missões.
"É uma cultura em que o poder está nas mãos dos homens. Existe uma cultura de violência e de silêncio", explica ao JN. Aos 56 anos, sabe bem que a dificuldade em participar determinados crimes é "transversal" a todo o mundo, mas ressalva que, ali, é diferente. "Tudo o que acontece não é para falar com ninguém", insiste. Ainda assim, acredita que, graças à presença feminina estrangeira, estão a ser feitos progressos.
"Com uma mulher, conseguem falar e, se fosse um homem, não se abriam. Com o nosso contributo, já começaram a comunicar questões relacionadas com violações, ataques de grupos armados a crianças, e a própria violência doméstica", assegura Dias.
Além disso, estão a ser confrontadas com um modelo "de igualdade e paridade". "Aumenta-lhes a confiança em que as mulheres podem, efetivamente, fazer parte integrante da sociedade. O nosso serviço não diferia do do homem: era igual. A forma como as mulheres nos viam é que era diferente", argumenta.
Durante um ano, a chefe controlou os acessos ao campo de refugiados, investigou crimes e esteve destacada na Polícia local. O objetivo era garantir a segurança dos civis e o respeito pelos direitos humanos na atuação das autoridades sudanesas. A experiência foi "enriquecedora": "É gratificante tudo aquilo que possamos fazer para contribuir para que aquela população consiga viver melhor e, num futuro, ter a sua vida de volta".
Em Portugal, está colocada no Departamento de Sistemas de Informação e Comunicação da Direção Nacional da PSP, em Lisboa.
Porque é que as mulheres têm de ficar de fora das decisões?
A primeira vez que participou numa missão de paz da ONU, Isabel Canelas tinha 30 anos e, com o posto de comissário, comandou, na Bósnia, um contingente de 33 polícias portugueses homens. Duas décadas depois, aterrou em Bogotá, Colômbia, para ser a única mulher entre dez intendentes e coronéis de diversos países. Em ambas sentiu o facto de estar em minoria... e não só por ser do sexo feminino.
"Na Bósnia, com os colegas de trabalho, era a questão do género associado à idade. E isso causou alguma estranheza ao início. Eu era muito nova e tenho 1,60 metros. Durante uns tempos percebi que não ia ser fácil que me levassem a sério", recorda a intendente, há 33 anos na PSP. Na altura, os primeiros três meses foram "de partir pedra"; os restantes, sem problemas. Já na Colômbia, onde prestou assessoria policial e militar, a desconfiança partiu da força pública local.
"Atrapalhou-me. Notava que os generais, os coronéis colombianos olhavam para mim: uma mulher...", frisa Canelas, que, na missão terminada recentemente, trabalhou à civil. "Não que não tivessem mulheres nas suas estruturas, mas ao nível do generalato é muito raro", ressalva a intendente, que identifica o posto e a origem europeia como fatores adicionais de discriminação. "Nunca estamos na perfeição", diz, bem-disposta.
Já no seio da ONU, nunca sentiu que o ser mulher a "prejudicasse". E não "abre mão" de que a presença de mulheres é "valor acrescentado". "Estamos, homens e mulheres, no mesmo caminho. Porque é que as mulheres têm de ficar de fora das decisões quando estas vão afetar não só os homens mas também as mulheres?", questiona Canelas, que, após quatro anos como segunda-comandante em Setúbal, foi colocada na Direção Nacional da PSP.
O hiato de duas décadas entre as missões, esse, explica-se pelo desejo de constituir família. "Aproveitei para repetir algo que me encantou aos 30 anos, que foi uma abertura de horizontes relativamente a formas de trabalhar", conclui.