Multidão leva Abril aos Aliados: "Tiraram-nos tanto que até nos tiraram o medo"
Abril é o que quisermos fazer dele, como demonstraram, esta terça-feira à tarde, as ruas do Porto, no tradicional desfile pela liberdade que evoca a revolução dos cravos. Milhares de pessoas reuniram-se no Largo Soares dos Reis, junto à antiga sede da PIDE, e marcharam até à Avenida dos Aliados.
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No palco ouve-se Zeca Afonso, Paulo Carvalho ou Chico Buarque. Aos poucos, começam a chegar cartazes com múltiplos motes de protesto oriundos de variadas coletividades sociais, da cultura, do desporto e da política. A concentração começa a ganhar forma no Largo Soares dos Reis, em frente à antiga sede da polícia política da ditadura, onde são homenageados os resistentes antifascistas debaixo de um calor ameno.
Um dos primeiros a chegar é Mário Oliveira, de 69 anos, da Maia, que maneja um cartaz contra o fator de sustentabilidade das reformas antigas. "É um castigo que estamos a pagar do tempo do ministro Vieira da Silva", afirma o reformado, que se aposentou com uma penalização de 13%.
Para ele, Abril é a oportunidade de tirar este problema do esquecimento, mas muitos outros pensaram o mesmo. Só que com problemas diferentes. Professores, polícias, estudantes, trabalhadores bancários, empresários do alojamento local e tantas outras profissões aproveitaram o 25 de Abril para reivindicar melhores condições de vida. "Tiraram-nos tanto que até nos tiraram o medo", lê-se no cartaz do Agrupamento de Escolas dos Carvalhos, de Vila Nova de Gaia.
Abril, no Porto, é interclassista e intergeracional. Novos e velhos, juntos, de cravo na mão ou à lapela, cantam em uníssono palavras contra a ditadura: "25 de abril sempre, fascismo nunca mais". Ou dançam e cantam ao som de gaitas de foles. Porque "maior que o amor pela liberdade é o ódio a quem a tira", lê-se noutro cartaz. E era por isso que estavam ali, para protestar contra os fascistas.
Pelo meio da multidão anda a Lua, cadela labrador preta de pelo brilhante e língua de fora que leva ao pescoço um cartaz em que promete morder fascistas. Não consta que ali tenha encontrado algum, mas a escassos cinco metros do local onde Lua pousa as quatro patas, foram interrogados e torturados cerca de 7600 resistentes antifascistas, como demonstram os registos, antes de 1974.
Para Francisco Jesus, de 24 anos, abril "é a possibilidade de ainda estar a estudar, de frequentar a faculdade e de ter acesso à escola pública". O jovem de Vila Nova de Gaia sublinha que, na ditadura, "não havia liberdade política, partidária nem sindical", pelo que faz questão de fazer abril "hoje e sempre".
Perto dali, Olívia Dias, de 69 anos, da Guarda, faz pequenos círculos com um cartaz que diz "Educação". Não se via logo à primeira, mas a multidão escondia-lhe os dois netos que trouxe para o desfile pela liberdade. "Fascismo nunca mais", diz a petiz, para gáudio da avó sorridente. A 25 de Abril de 1974, Olívia Dias tinha 21 anos e estava em Lisboa com o filho de 11 meses na mão. "Foi um dia fantástico, Abril é para celebrar", desabafa, enquanto circula a petição pelo encerramento de todo o comércio aos domingos e feriados.
Observados pelo busto de Virgínia Moura regado de cravos e rosas, a multidão portuense arrancou às 15.18 horas rumo à Avenida dos Aliados onde a revolução foi festejada com as atuações de Caruma e Pedro Mestre. Em marcha lenta, cartaz atrás de cartaz, dezenas de reivindicações escritas chegaram aos Aliados. Destaque para as causas que afetam a maior parte dos portugueses todos os dias, como a inflação e a habitação, com vários grupos informais a defenderem medidas mais eficazes.
Neste "imenso Portugal", como sonha Chico Buarque sempre que canta o Fado Tropical, Abril é reivindicação, é memória, é protesto, é festa, é dança, é outra coisa ou causa qualquer. É poder escolher, porque abril deu-nos a liberdade para isso.