Não são as práticas antipandemia que afetam a apanha da cereja. É a produção, que caiu para menos de metade, que torna triste e pobre o ambiente.
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"Mete dó deixamos na árvore as cerejas estragadas, 'a sorrir' (rachadas)", lamenta-se Lurdes Nogueira, enquanto puxa mais um ramo da cerejeira com o fruto por amadurecer ou com formigas, ou abertas pelas oscilações atmosféricas. O trabalho começou às oito da manhã e ainda o meio-dia não chegou e as fases repetem-se.
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"A gente puxa o ramo e são mais aquelas que lá ficam, do que aquelas que pomos no cesto", acrescenta Cila Martins, outra das "apanhadoras" de cereja neste pomar perto de Vale de Prazeres, no Fundão. O trabalho faz-se com novas práticas face à covid-19: mais lavagens de mão, máscara na deslocação em carrinha entre pomares, refeições em separado, cestas que não se repartem.
O JN inseriu-se neste grupo de nove trabalhadores até ao fim da jornada, às 17 horas. Todos se conhecem há anos. Para apanhar cereja, é preciso mais atenção, esticar o braço ao avistar o fruto vermelho não chega. É preciso aproximação e analisar se ele está "tocado" pelas formigas ou rachado. Um trabalho mais minucioso que nos outros anos, repetido na zona do crivo", onde as mulheres, já em armazém, escolhem as cerejas para encher a embalagem de cartão.
Para quem as apanha, as restrições face à pandemia, que obriga a um maior afastamento dos trabalhadores na apanha (um por cada árvore, com outra de intervalo), não é o maior problema. Toda a atividade é recomeçada com a desinfeção das mãos cujo detergente o proprietário do pomar, Tomaz Castel-Branco colocou à disposição. Na apanha quase não se fala do vírus das nossas vidas, mas sim da falta de cereja e do tempo instável que reduz os dias de trabalho.
Apanha às prestações
Cila Martins, doméstica, inscreve-se para a apanha da cereja há três anos, desde finais de abril até julho. Com dois filhos a estudar no Ensino Superior, auferia "muito mais que 1000 euros" por cada temporada. "Era uma grande ajuda, mas este ano os dias de apanha são por fases. Costumava trabalhar de segunda a domingo, e agora não. Paramos uns dias e recomeçamos dias depois. Este ano é uma desilusão".
Há uns 10 anos que o casal João e Lurdes Nogueira faz a campanha da cereja e do pêssego, que se estende até setembro. A dupla nunca conheceu um ano como este. "Há pouca fruta, não há alegria. O distanciamento afasta-nos um pouco no pomar, mas não nos impede de conversar. Mas a tristeza é tanta de ver a fruta nos ramos estragada que nem dá muita vontade de falar", confessa Lurdes.
A redução da dinâmica do comércio ditou também novas metodologias para o produtor no que diz respeito ao escoamento do produto. "O comércio não está a pedir tanta cereja, e as exportações este ano são quase inexistentes porque não há. Temos de fazer a apanha de modo a ter o fruto o menos tempo possível embalado no armazém. Depois o tempo está instável", explica o proprietário deste pomar da Quinta da Porta, Tomaz Castel-Branco, menos preocupado com a implementação das boas práticas face à pandemia.
"Não são essas restrições que reduzem a quantidade de fruta apanhada, mas sim a falta dela. Isto é uma calamidade e a chuva continua a cair, o que está nas árvores pode perder-se", frisa o produtor que tirava em média 80 toneladas por ano de cereja da quinta, quantidade que este ano não ultrapassará as sete. "Precisamos de calor neste momento, não frio ou humidade", refere o produtor. "Temos zonas onde nem vamos entrar para colher, porque não vale a pena", diz desolado.
Tempo fatal
O Fundão registou este ano condições meteorológicas "extremas", entre final de março e início de abril, com neve, chuva intensa, queda de granizo e geada fora de tempo.
Pedido de ajuda
Os produtores de Cereja do Fundão apelam à intervenção do Governo para ajudar a minimizar os "elevados prejuízos" que vão ter devido a quebras de produção entre os 50 a 80% provocadas pelas condições meteorológicas deste ano.
Valores
Seis toneladas é a quantidade média de cereja retirada por hectare no Fundão. Este ano, as árvores vão dar menos de metade. Oito euros é o valor médio por quilo da venda da cereja que se faz junto à estrada nacional. As primeiras são mais caras.