Dos pavimentos que forçam os automóveis a abrandar a velocidade sem intervenção dos condutores, aos sensores que indicam obstáculos e plataformas que preveem a possibilidade de acidentes, são várias as formas de aproveitar as ferramentas digitais.
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Um pavimento que retira energias aos carros, obrigando-os a abrandar. Aplicações que analisam dados e identificam pontos negros e a probabilidade de ocorrência de acidentes. Sensores que recolhem informações de viaturas e estruturas rodoviárias para reduzir o risco de quem anda nas estradas. Estes são alguns exemplos de como as tecnologias estão a ajudar as cidades a combater a sinistralidade rodoviária e a melhorar a mobilidade.
Em Matosinhos, junto a uma passadeira, já foi ensaiado um pavimento inovador que "retira energia aos veículos, reduzindo-lhes a velocidade de forma automática", conta Francisco Duarte, da startup Pavnext, que desenvolveu esta tecnologia, explicando que quem vai ao volante não tem de travar, pois o veículo abranda "quer o condutor queira ou não". Os carros ligeiros reduzem para 30 quilómetros/hora e os camiões sentem uma redução similar. O sistema ainda não está a funcionar para veículos de duas rodas.
Essa energia captada é depois "transformada em energia elétrica", que pode ser usada para "iluminar a passadeira, via ou até carregar bicicletas e trotinetes elétricas", acrescenta o empreendedor.
A experiência em Matosinhos, a primeira em ambiente real, decorreu entre agosto e novembro de 2021 e, em breve, estará noutras cidades, a avaliar pelo interesse que suscitou. Francisco Duarte diz que já houve manifestações de interesse de "várias cidades em Portugal e algumas no estrangeiro" que querem aplicar a tecnologia. A empresa só ainda não avançou porque, devido à falta de materiais no mercado, ainda "não é possível dar resposta" aos pedidos.
Dados são fundamentais
Em Setúbal, a elevada sinistralidade levou o comando da GNR e a Universidade de Évora (UÉ) a criarem o MOPREVIS - Modelação e Predição de Acidentes de Viação no Distrito de Setúbal, uma plataforma informática que indica os pontos com "maior probabilidade" de acidentes rodoviários, ajudando a prever a sinistralidade e facilitando a tomada de decisões das autoridades.
Em 2017, Setúbal "ficou em 1.º lugar na sinistralidade nas estradas" e, em 2018, "cerca de 12% das vítimas mortais resultantes de acidentes de viação em Portugal foram registadas" naquele distrito, explicou a universidade.
Já existe uma "primeira versão" da plataforma, adianta ao JN Paulo Vicente, docente da UÉ que coordena o projeto. Mas a dificuldade em obter "dados com o rigor necessário" para afinar as variáveis do sistema, assim como a pandemia, causou alguma demora, pelo que os investigadores pretendem estender o prazo de conclusão do projeto por alguns meses. Por isso, perspetiva-se que a aplicação fique efetivamente pronta apenas "no final do ano".
O coordenador sublinha a importância de haver redes de informação rigorosa, para afinar as variáveis que ajudam a prever os acidentes, tornando a plataforma o mais fiável possível. Para além de dados da GNR, no sistema está a ser incorporada outra informação, como a meteorológica. Paulo Vicente e os restantes investigadores estão, apesar da "falta de contadores" nas vias, a procurar dados sobre a intensidade de tráfego e velocidade a que os veículos circulam.
"Se se quer de uma vez por todas reduzir a sinistralidade rodoviária grave, não vamos lá só com campanhas, precisamos da parte científica, que pode contribuir decisivamente", defende Vicente.
Susana Sargento, investigadora da Universidade de Aveiro e do Instituto de Telecomunicações, assegura que "as tecnologias podem ajudar muito" à redução da sinistralidade, pois "muitas vezes não conseguimos controlar o comportamento humano".
Alertar condutores e peões
"A sensorização e comunicação permitem que tenhamos informação em qualquer instante de onde está um carro, qual a sua velocidade, em que direção vai, onde estão os outros veículos, ciclistas e peões. Isto vai fazer com que consigamos determinar uma possibilidade de problema e alertar os condutores e peões para modificarem a sua atuação". No futuro, espera-se que esta informação "vá diretamente para os carros autónomos".
As informações recolhidas por sensores, vídeos e outros equipamentos instalados em veículos de vários tipos, nas infraestruturas rodoviárias, na rua e até recolhidos pelos telemóveis dos peões, permitirão construir "mapas" da realidade que nos rodeia, ajudando a evitar acidentes e, também, a aumentar a fluidez de tráfego e a qualidade do ambiente.
No Porto já foi criada, há anos, uma rede de informação nos autocarros e outros veículos. Em Aveiro, à boleia do Steam City, instalaram-se equipamentos em várias estruturas.
O MobiWize, um dos vários projetos em que a investigadora Susana Sargento está envolvida, aponta para a construção de "uma plataforma 5G que incorporará uma infraestrutura de acesso, com sensores, pessoas e veículos, com o objetivo de melhorar a mobilidade urbana".
Saber Mais
Estratégia até 2030 para reduzir mortos e feridos
O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) realizou um relatório técnico no âmbito da estratégia de segurança rodoviária "Visão Zero 2030", que aponta a necessidade de variadas medidas para se alcançar a meta de reduzir em 50% os mortos e feridos em acidentes de viação até 2030.
Zonas urbanas são mais perigosas
No relatório, o LNEC aponta que 30% dos acidentes e 19% dos mortos têm lugar em cruzamentos de zonas urbanas. Os acidentes em nós de ligação de autoestradas e em intersecções de estradas com faixa de rodagem única provocaram, respetivamente, 3% e 9% das mortes.
Acidentes causam impacto de milhões
Segundo o estudo "O Impacto Económico e Social da Sinistralidade Rodoviária em Portugal" do Instituto Superior de Economia e Gestão, a sinistralidade teve um custo económico e social de 6,423 milhões de euros em 2019 (3,03% do PIB). Os custos humanos e a perda bruta de produção corresponderam a 91,5% do total.
Sinistralidade tem tendência de queda
Desde 1999, altura em que 1750 pessoas morreram em acidentes rodoviários, a tendência geral é de descida. Em 2020, período em que a pandemia condicionou fortemente a mobilidade, houve uma quebra de 26% nas vítimas mortais face ao ano anterior.
Entrevista Paula Teles*: "Tecnologias devem privilegiar mobilidade pedonal e ciclável"
O contributo da tecnologia para combater o flagelo da sinistralidade é relevante?
Sim, muito. Diria que neste momento a maior urgência passa, justamente, por aí. E presumo que esse vai ser o futuro imediato. Veja-se os veículos sem condutor. Enquanto isso, soluções que reduzam as velocidades e detetem situações de risco serão fundamentais na ótica do automobilista. Em meio urbano precisávamos que as tecnologias privilegiassem a mobilidade pedonal e ciclável.
Que outras mudanças são necessárias, nomeadamente a nível do comportamento humano?
Uma mudança na cultura das velocidades. As pessoas andam sempre com muita pressa. Também reduzir no consumo de álcool e na utilização do telemóvel durante a condução. Enfim, também seria muito bom se a cultura do peão em meio urbano aumentasse em detrimento da do automóvel.
E a nível do redesenho das zonas urbanas?
Na realidade, quando as nossas estradas passarem a ruas. Essa será a aposta de fundo no combate à sinistralidade rodoviária. Quando tivermos a infraestrutura desenhada com sistemas de acalmia de tráfego que sejam dissuasores de velocidades, tais como algumas gincanas, perfil estreito, utilização de mobiliário urbano, integração de corredores verdes, entre outras, as nossas cidades serão mais amigas e seguras. O bom desenho da infraestrutura será o grande responsável pela segurança com repercussões enormes na gestão e na qualidade do ambiente urbano.
*Especialista em mobilidade urbana