O novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) traz "aspetos positivos" e "um conjunto de boas intenções", mas as ordens profissionais e algumas associações do setor alertam que as reformas necessárias "não se resolvem com um papel" e para a falta de "soluções práticas". Há ainda quem considere que o documento poderia ter ido mais longe, nomeadamente no que toca às medidas para valorizar as carreiras e atrair profissionais, e quem peça uma direção executiva com coragem para fazer as reformas necessárias.
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O estatuto, apresentado pela ministra da Saúde, tem três linhas de intervenção. A primeira passa por melhorar a organização do SNS e, assim, melhorar também o funcionamento do setor público de saúde. Para tal, será criada uma nova direção executiva que irá assumir "a coordenação de toda a resposta assistencial" e assegurar o funcionamento em rede do setor público de saúde. O segundo pilar confere mais autonomia aos hospitais na contratação de recursos humanos e mais autonomia aos centros de saúde em termos administrativos. Por último, o documento prevê medidas de motivação para os profissionais. Neste domínio, Marta Temido avançou que irá ser negociado com os sindicatos o regime de dedicação plena dos profissionais. Será um regime "progressivo" e "voluntário", que se iniciará pela classe médica.
Para o bastonário da Ordem dos Médicos, o novo estatuto pode permitir novas formas de gestão. Ainda assim, alerta que as reformas necessárias "não se resolvem com um papel". Para Miguel Guimarães, o SNS tem "um problema sério" que se prende com a incapacidade de reter e motivar os profissionais de saúde. É, por isso, necessário valorizar as carreiras e a solução para isso "não é um papel que faz". Passa, defendeu o bastonário à agência Lusa, por negociações com as estruturas representativas dos profissionais de saúde e com a alteração da carreira médica.
Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, olha para o documento com " muitas dúvidas e receios". Considera que o estatuto traz "medidas ansiadas" pelos profissionais, mas falta "perceber como vão ser concretizadas". "Estamos habituados a ter estas palavras bonitas e depois não ver uma concretização real. Esperamos que não seja assim. Parece-nos que foi apresentado um conjunto de boas intenções, mas que não mostra exatamente quais são as soluções práticas", sublinhou Nuno Jacinto, apontando a incoerência entre o novo estatuto e a permissão dada pelo Governo para a contratação de médicos não especialistas para os centros de saúde.
"Quando falamos na valorização e captação de profissionais para o SNS, falamos do mesmo Governo que promulgou um Orçamento de Estado a permitir médicos não especialistas a substituir médicos de família. Uma coisa não bate com a outra. Não podemos dizer que queremos valorizar e captar profissionais, ao mesmo tempo que possibilitamos a prestação de cuidados de menor qualidade aos nossos cidadãos", criticou.
Recordando que "o estatuto era algo necessário para conseguir responder à nova Lei de Bases da Saúde", o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN) considera que o documento tem "vários aspetos positivos". Mas é necessário "esperar pela sua implementação, pelo texto final do estatuto e pela sua calendarização".
"Estamos empenhados que este novo estatuto consiga cumprir a sua função de melhorar o nosso sistema de saúde, mas temos de esperar pela sua implementação e por ver como é que as coisas correm. Precisamos de medidas concretas", referiu André Biscaia.
Para a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, a "grande curiosidade" deste estatuto passa pela nova direção executiva do SNS. Ana Rita Cavaco defende a nomeação de uma pessoa capaz de "fazer as reformas estruturais precisas" e com um perfil semelhante ao do ex-coordenador do plano nacional de vacinação contra a covid-19. A bastonária recorda que o processo "foi um sucesso graças" aos enfermeiros e ao almirante Henrique Gouveia e Melo, que "trabalhou muito bem" com os profissionais.
Nuno Jacinto considera que a nova direção executiva tem de ter "a sensibilidade" para adotar "soluções que respondam às necessidades diferentes dos vários locais", bem como a capacidade de ouvir os profissionais e "perceber o que falta em cada momento". "A figura por si só não resolve nada. Até agora já tínhamos este diretor executivo: era a ministra", frisou.
Já André Biscaia, da USF-AN, defende que constituição de uma direção executiva é importante para "diminuir desigualdades regionais e locais que o SNS apresenta, nomeadamente em termos de acesso e número de profissionais". "Esperamos que esta direção executiva consiga trabalhar em rede, coordenar toda a resposta assistencial, monitorizar o desempenho e promover a participação dos cidadãos", destacou.
O bastonário da Ordem dos Médicos vê com "apreensão" a criação desta entidade "que vai ficar com funções que teoricamente são da ministra e dos secretários de Estado". "Ou vamos substituir as estruturas que já existem por esta nova estrutura ou vamos ter mais uma nova estrutura em cima das que já existem. Não vejo nada de muito bom nisso", considerou.
Também a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) manifesta dúvidas relativamente à nova entidade gestora do SNS, nomeadamente no que toca à forma como "a direção vai integrar e articular-se com as restantes estruturas do Serviço Nacional de Saúde". Em matéria de recursos humanos, os administradores entendem que o documento "poderia ter ido mais longe", contemplando um modelo de retribuição em função do desempenho para todo o Serviço Nacional de Saúde para "valorizar mais" os profissionais.
"Não o faz. Fala apenas em dedicação exclusiva, o que me parece curto. E o estatuto ignora também totalmente a carreira da administração hospitalar, que está estagnada há mais de 20 anos e que explicará também porque é que se fala tanto da necessidade de haver uma melhor gestão no SNS", criticou à Lusa Xavier Barreto, presidente da APAH.