Todos os dias, o secretário de Estado do Planeamento, José Mendes, escreve sobre a viagem de Bragança a Sagres de bicicleta.
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Etapa: Sertã-Mora (125 km)
Com a azáfama do pedal e da observação dos recantos do território, nem me apercebi de que havia ciúmes a bordo. Só à sexta etapa, já a Sertã ia longe, é que a minha bicicleta deixou escapar os primeiros lamentos. Que sem ela, a empreitada não seria possível. Por isso, clamava por alguma atenção. Bem contestei, lembrando que ela, a princesa de duas rodas, todos os dias partilhava comigo o quarto, mas estava irredutível.
Para equilibrar a contenda, argumentei que a chave que abria as portas da paisagem eram as minhas bem treinadas pernas. No entanto, hoje era dia não. Insistiu que as minhas pernas eram duas, mas que ela contribuía com doze. Doze mudanças, da mais longa para as descidas até à mais curta para as mais íngremes rampas.
Às portas de Vila de Rei, a disputa encontrou resposta. A placa indicava "Picoto da Melriça". Trata-se do centro geodésico de Portugal, uma das paragens que tinha previsto, mas que exige que se saia da N2. Faço a curva, endireito a bicicleta e quando levanto a cabeça lá estava a rampa, majestosa, de quase um quilómetro, empinada acima de 15 %. Ponho de imediato o polegar a apertar a alavanca das mudanças. Pela primeira vez em toda a viagem, a corrente não quis engrenar à primeira as marchas mais lentas. As pernas reclamam do peso extra. A velocidade cai drasticamente. Assim não ia conseguir. Nova tentativa. Nada. À terceira, a máquina abandona o mau feitio e faz aquilo que eu quero. Ufa!
E assim chego de pedalada suave ao centro do país, o marco geodésico padrão. Uma pirâmide de nove metros de altura. Dali podemos observar, numa volta completa, a anatomia da nossa paisagem. Que visão magnífica! Bem longe, os maciços da cordilheira central - Gardunha, Estrela, Lousã, Aire e Montejunto. Para sul, as amareladas planícies alentejanas. Na proximidade, o pinhal. Se o dia for mesmo límpido, a linha do mar lá para os lados onde se põe o sol.
Um momento sublime. A grandiosidade do espaço quase me embriaga os sentidos. O nosso Portugal!
Reconhecido, olhei para a bicicleta, ainda amuada, e dei-lhe razão com um sorriso. "Certo, mas coloca óleo na corrente", retorquiu a princesa.