Projeto em Ovar vai à sala de aula e aos acampamentos. Tudo para que as crianças não faltem, tenham boas notas e não deixem os estudos para casar.
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Numa carrinha da Cruz Vermelha, depois de alguns quilómetros, em parte por caminhos de terra, Maria João Costa e Joana Falcão chegam ao destino. É um bairro cigano, em S. Vicente Pereira, Ovar. Os moradores não estranham, estão habituados às visitas da educadora social e da psicóloga. Trocam letras no nome do projeto, mas elas corrigem: "Chama-se Agitana-te".
Já lhes conquistaram a confiança, até porque desde 2013 que as técnicas da Cruz Vermelha de Ovar, no projeto com a Cercivar, visitam os acampamentos. Numa luta para que as crianças não faltem à escola e não larguem os estudos para casar na adolescência.
À chegada ao acampamento, as técnicas sabem o nome de todos de cor. Vão visitá-los amiúde para ajudar as crianças nos trabalhos de casa, perceber se têm ido às aulas, convencê-los a não desistir ou buscá-los para passeios. Enquanto isso, provocam os adultos a entrarem em formações ou na busca por emprego. A maioria vive do Rendimento Social de Inserção (RSI). Mas Joana e Maria João também vão às escolas. Antes de pararem no bairro, foram à da Regedoura, em Válega. Vão lá todas as sextas, fazer atividades com o 3º ano. "Este ano letivo, ainda só estamos a trabalhar com esta turma, onde há um aluno cigano", explica Maria João. Na escola há muitos mais e estão integrados, porque aí a comunidade é antiga. Começam por uma brincadeira em que os alunos se abraçam. Não estão ali só para combater o insucesso escolar de alunos ciganos, também sensibilizam os colegas e professores a aceitarem a diferença.
"As crianças são sempre mais permeáveis que os adultos. Mas às vezes é muito complicado combater a cultura", diz a psicóloga Joana. Tinha planeado dar consulta a dois ciganos, faltaram à escola. O absentismo ainda é muito sentido. E falta conseguir muita coisa. Os pais ainda não deixam os filhos ir em visitas de estudo para fora de Ovar e nenhum cigano chegou ao ensino superior. A maioria vai até ao 9º. Também não é fácil evitar que casem cedo, é aí que largam os estudos. "Eles ainda sentem que há coisas que não podem fazer por serem ciganos", diz Maria João.
PAULO MONTEIRO SOARES
Nem com febre falta às aulas
Na primeira fila da sala daquele 3.º ano, de "tupperware" a servir de estojo e a desenhar a família que quase não cabe na folha, Paulo Monteiro Soares, de oito anos, é caso raro. Nem com febre falta às aulas. "Já ficou doente e não fica em casa". A professora Manuela Pereira olha-o e diz: "Estou a rever as letras com ele, esqueceu-se nas férias". Em casa, os pais não podem dar o que não tiveram. Por isso é que tantos têm dificuldades de aprendizagem. Se lhe perguntam se gosta da escola, Paulo oferece um sim redondo. E as notas? Aí abana a cabeça de sorriso matreiro. A professora está habituada a ter alunos ciganos, nunca teve problemas. Só tem pena que ele não vá às visitas de estudo. "Já começa a ir ao Carnaval de Ovar", diz ela. Mas para fora do concelho só com a Joana e a Maria João. "Levaram-me à praia", diz Paulo. Nas férias, as técnicas levam-nos a museus, parques temáticos, ao teatro. "Connosco os pais já confiam. E eles adoram, estão sempre a pedir para ir", diz João, que recorda que nas primeiras idas à praia ficavam admiradas por tirarem a roupa. À porta da escola, à espera de Paulo, está o avô Diamantino, que "gostava que ele estudasse até tarde".
ANTÓNIO FILIPE
Casou aos 16 e já tem um filho
No bairro de S. Vicente Pereira, António Filipe chega de bebé ao colo e adianta-se: "Tem quatro meses". Aos 20, já casou duas vezes. Na primeira, tinha 16. Porquê? "Porque quis". Mesmo depois de casar, continuou a estudar. Mas só tem o 6.º ano. "Não gostava de andar na escola", justifica-se. Agora, vai fazendo arranjos em casa, é para o que tem jeito, diz ele, ao lado da mulher de cabelo a bater no fundo das costas. António Filipe esteve numa formação de informática, empurrado pelas técnicas do Agitana-te. Mas vive sem esperança que a vida venha a ser mais que o RSI.
ARMANDO MONTEIRO
Quer que os filhos vão o mais longe possível
No mesmo bairro está a família de Armando, que bem avisou o filho mais velho. De pouco serviu. Aos 17 já casou. Só estudou até ao 7.º ano. "Olho para mim e vejo que não tenho futuro. Queria que eles fossem o mais longe possível", diz ao JN o pai, que deposita esperanças no filho de 10 anos. "Os professores falam muito bem do meu Jonas". Está na escola, no 5.º ano e gosta de ciências. "Às vezes tenho boas notas", comenta o pequeno. O irmão Samuel é mais arisco. Quer jogar à bola "como o Ronaldo". E o pai conta que o preconceito na escola não é passado. "Ele e os amigos partiram uma porta e o cigano é que paga. As crianças também sentem essa distinção", garante. Mas os filhos falam-lhe de Joana e Maria e ele sente "que estão integrados". Só com elas é que os deixa ir para longe, em visitas de estudo não vão. Tem "medo que aconteça alguma coisa".
ARTUR RAMIRES
Tem 18 anos e acabou de casar
Artur Ramires conta, também no Bairro de S. Vicente Pereira, que lhe faltava um ano para acabar o curso de eletricista quando deixou os estudos para casar. Foi há uma semana, aos 18. Ele explica: "Queria casar só quando tirasse a carta, mas ela apareceu". Estava prometido a outra, só que o amor falou mais alto quando conheceu Bruna. Vive do Rendimento Social de Inserção, não é por não querer emprego. "O Bruno foi dos que mais procurou trabalho", testemunha a psicóloga Joana, que tem ajudado na busca. "Já fui a várias empresas e nunca me dão trabalho. É por causa da minha etnia. Quem me dera que dessem. Elas ajudam-me muito a procurar e fico triste", desabafa Artur. Em entrevistas, quando a empresa percebia que era cigano dizia-lhe que a vaga já estava ocupada. Artur não desiste. Quer ser eletricista, mas por haver "muito preconceito" vai começar a fazer feiras, enquanto a mulher sonha com o curso de enfermagem.
RAFAEL MONTEIRO
Paulo é bom aluno e pai sonha com futuro
De chapéu preto, Rafael, 35 anos, está de luto. Não pode ser fotografado. Enquanto o filho Paulo, de 10 anos, brinca com uma fisga pelo mesmo bairro, conta que tem seis filhos. "O Paulo é o mais velho e escola é com ele. A primeira coisa que faz quando chega a casa são os trabalhos de casa", diz orgulhoso. Rafael só tem a 4.ª classe e sonha mais para o filho. "Não quero que case cedo, quero que vá para a universidade". Defende que ele só devia casar aos 25, "aí já tem cabeça". E Paulo reproduz o discurso: "Quero acabar a escola, ter carta e só depois casar". Quanto à universidade, diz que "é preciso estudar muito" e aponta para as técnicas do Agitana-te: "Elas vão à minha escola ensinar coisas. E levam-me a passear. Já fui ao Magikland, à Feira de Março, à pista de gelo no Porto, à piscina".