Várias centenas de médicos - muitos deles abaixo dos 30 anos - manifestaram-se, esta quarta-feira, à porta do ministério da Saúde. Reivindicam aumentos salariais, horários-base de 35 horas e melhores condições de trabalho, denunciando a degradação do SNS, a fuga de profissionais para o privado e a crescente burocracia. Descrevem a situação nas urgências como "uma selva" e dizem que, em muitos casos, são os clínicos ainda em formação que asseguram os serviços. Entre os mais jovens há quem, devido ao preço da habitação, ainda viva em casa dos pais.
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"O povo merece o SNS", gritaram repetidamente os médicos, em frente ao ministério da Saúde, em Lisboa. Também pediram "respeito" - reivindicação igualmente muito ouvida nos protestos dos professores - e, com ironia, dirigiram-se ao ministro, Manuel Pizarro, ao ritmo do "Malhão": "Ó Manel, Manel/Que ideia a tua/Fechar o serviço, fechar o serviço/Pôr todos na rua".
Entre a multidão, havia quem empunhasse cartazes a lembrar que o país tem hoje 1,5 milhões de utentes sem médico de família. Outro manifestante mostrava uma mensagem a dizer ser "chefe na responsabilidade mas não no salário", um terceiro pedia a fixação de médicos com salários dignos e, num outro cartaz, lia-se "Não faço omeletes sem ovos". A meio do protesto chegou um caixote, a simular um caixão, com a inscrição "RIP, SNS".
Na concentração estiveram o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, e Mariana Mortágua, deputada do BE. Raimundo denunciou a "opção de se transferir dinheiro público para o setor privado da saúde", criticando também o "caminho de desinvestimentos e de encerramentos" levado a cabo pelo Governo.
Já Mariana Mortágua frisou que os manifestantes se batem por um "serviço de excelência" para os utentes. "Estes médicos sabem do que o SNS precisa, sabem como se pode salvar o SNS e o Governo devia ouvi-los", referiu a bloquista. O protesto contou ainda com a presença de Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP, e Dina Carvalho, da UGT.
Terminar uma noite nas urgências "é como ficar de ressaca"
Maria Manuel Saraiva, estudante do 6.º ano de Medicina, em Lisboa, empunhava um cartaz onde se lia "Futura Médica", mas com a palavra "médica" riscada e substituída por "emigrante". Ainda não acabou o curso e, embora a contragosto, já decidiu que vai trabalhar para o estrangeiro, conforme revelou ao JN.
Tomou essa decisão ao dar-se conta da "revolta e cansaço extremo" que sentem os médicos do SNS: "A palavra 'resiliência', que foi muito dita na pandemia, está esgotada. A nossa classe deu o litro nessa altura e, agora, nada muda", lamentou.
Maria descreveu os serviços de urgências noturnos como uma experiência "horrível. "Ainda no outro dia estava a comentar com colegas: é como se ficássemos de ressaca no dia seguinte", explicou. E não antevê melhorias, bem pelo contrário: com o agravamento da situação nas urgências, prevê que os corredores dos hospitais voltem a encher-se de camas.
"Acho que não há noção da quantidade de doentes, neste momento, para cada médico", testemunhou a estudante. "Na verdade, os nossos serviços, neste momento, estão a ser aguentados por médicos internos e, também, por alunos de 6.º ano como eu", referiu.
"Faltam especialistas. Não consigo fazer nada com certeza sem um ao lado"
No grupo de Maria Saraiva estava Francisca Trigo, de 25 anos, médica interna de Formação Geral em Setúbal. Questionada sobre se o SNS está em risco de rutura, atirou: "Não está em risco, está podre. Só quem está lá dentro consegue perceber o quão desfeito aquilo está".
Assim sendo, que medidas deveriam, no seu entender, ser tomadas de forma mais urgente para reverter essa situação? "Para começar, tentar fixar os especialistas no SNS. Eu, enquanto interna, não consigo fazer nada com certeza sem ter um especialista ao meu lado, e já quase não existem especialistas no SNS", referiu.
Francisca fez um retrato negro das urgências, que descreveu como "uma selva". "Uma pessoa leva, no mínimo, seis horas a ser atendida", relatou. "Eu faço banco todas as quintas-feiras e, nas últimas duas semanas, vi a mesma mulher à frente da porta da minha sala. Há duas semanas que ela está internada nas urgências porque não tem vaga nos serviços e não tem para onde ir. As pessoas ficam ali dias, dias e dias", completou.
"Fuga" para o privado é "uma bola de neve"
Jorge Rebola, jovem médico interno de Ortopedia do Centro Hospitalar de Lisboa Central, lamentou que não se vislumbre, da parte dos decisores, nenhum tipo de medidas que impeçam a "fuga" de profissionais para o privado. "Isto depois é uma bola de neve: as pessoas saem, começa a haver uma sobrecarga dos elementos que ficam, estes ficam descontentes e, quando conseguem, começam a sair também", relatou.
Ao seu lado, João Simões, 27 anos, médico interno de Pediatria no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, falou em "degradação total" do SNS e mostrou não ter dúvidas: "Está claramente em causa o SNS na forma como o conhecemos, ou seja, gratuito e universal. Nunca houve tanto dinheiro gasto, mas continua a não ser dirigido para agarrar as pessoas".
Catarina Pinto, 26 anos, veio de Guimarães. Disse ao JN que os colegas estão "desmotivados e exaustos". "Não existe mais nenhum emprego com horários superiores a 40 horas", afirmou, concretizando: "Se tenho um doente complicado não consigo picar o ponto na hora a que tenho de picar, porque é uma vida que está a depender do meu trabalho. E continua-se assim. Trabalhamos muitas horas e ninguém nos valoriza".
Esta médica interna, que descreve o estado atual das urgências como "um descalabro", garantiu que os clínicos mais jovens são especialmente prejudicados no quotidiano hospitalar: "Estão sempre a aproveitar-se de nós porque somos novos e [acham que] podemos trabalhar muito", queixou-se. "Temos de ter direito a vida pessoal. Somos seres humanos, não somos instrumentos de trabalho".
Maria Ana Amorim brandia um cartaz com uma interrogação: "SNS - Um alvo a abater?". Esta médica no Hospital do Litoral Alentejano, de 47 anos, relatou que, nos últimos tempos, tem acumulado cada vez mais tarefas.
"Sou médica de família e metade das minhas consultas são a fazer burocracia", vincou, dando como exemplos o preenchimento de atestados médicos, relatórios ou justificações para as crianças apresentarem na escola. "O SNS está em grande risco de, pelo menos, perder a qualidade que tinha", alertou. "Um dos objetivos é transformar tudo em privado, e isso está a ser conseguido".
Nem os (jovens) médicos escapam à crise da habitação: "Valores absurdos"
A crise da habitação, outro tema do momento, também afeta os médicos, sobretudo os mais jovens. Embora Catarina Pinto sinta menos essa realidade por trabalhar em Guimarães, os relatos que vai ouvindo dos colegas a esse respeito não lhe deixam dúvidas: "Em Lisboa é impossível, o alojamento é um absurdo. E no Porto também".
Jorge Rebola considera igualmente que, nos dias que correm, encontrar casa na capital é "praticamente impossível". Muitos dos seus colegas mais jovens "ficam cada vez mais tarde na casa dos pais", refere; mais tarde, à medida que progridem na carreira ou que conciliam funções com o privado, vão conseguindo comprar casa própria. No entanto, mesmo quando são esse passo, muitas vezes fazem-no "à custa do endividamento, porque os valores são astronómicos".
Maria Saraiva subscreve. "Basta fazer as contas: quando entramos [na profissão] e começamos o ano comum, recebemos 1100 euros líquidos, mais ou menos. Com isso paga-se um T1 ou um T2 em Lisboa e ficamos sem nada".
Assim, Maria Saraiva confirma que, atualmente, nem a classe dos médicos escapa à crise da habitação. "Temos ou de ficar em casa dos pais ou de continuar a alugar um quarto, quando já somos profissionais que tiveram seis anos de educação universitária e estamos a trabalhar para a saúde dos outros". E, com ironia, acrescenta: "Mas não faz mal: eu vou fazer telemedicina e, quando for nómada digital, hei-de conseguir uma casa em Lisboa".