Francisco Teixeira da Mota é advogado e tem atuado sobretudo na defesa da liberdade de expressão, incluindo no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no qual Portugal tem já várias condenações por violar aquele direito. Ao JN, fala numa "evolução" dos juízes nacionais, mas alerta que há "muito caminho" a fazer.
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Há quem precise mais do que outros de invocar a liberdade de expressão para dizer algo?
A liberdade de expressão é particularmente importante para as pessoas que são minoritárias, que saem da normalidade, que não estão ao meio. Se estiver numa Monarquia e disser “Viva o Rei”, não precisa de se defender com a liberdade de expressão. Mas se disser “Viva a República”, já é preciso defender-se com a liberdade de expressão. A liberdade de expressão é uma defesa essencial não para o "mainstream", mas, sobretudo, para quem tem alguma opinião divergente daquilo que é o comum das opiniões. Serve tanto à Direita como à Esquerda, a gordos e magros, a velhos e novos. É essencial para todos.
Os tribunais portugueses têm-se adaptado à jurisprudência do TEDH?
É contraditório. Tenho decisões judiciais que já integram completamente a visão europeia da liberdade de expressão. Há uma liberdade de expressão americana, em que nada é possível de ser proibido. Depois temos a liberdade de expressão europeia do TEDH, que é menos vasta que a americana, mas muito mais vasta do que a nossa. A nossa, muitas vezes, era paroquial. Tem evoluído. A primeira decisão que houve condenação de Portugal foi em 2000, no caso Vicente Jorge Silva [por um editorial no jornal “Público”, em 1995]. E desde aí tem havido muitas condenações, mas também uma grande evolução das decisões judiciais. Mas continua a haver magistrados que não percebem.
O que é que não percebem?
Não percebem, sobretudo, porque têm uma visão um bocado quadrada da aplicação da lei. Agarram-se ao Código Penal e à definição literal de difamação e não a integram com outros valores que são preponderantes, como a liberdade de expressão, de informação. Haverá casos em que justifica mais dar prevalência à liberdade de expressão e haverá casos em que se justifica menos. Muitas vezes, os nossos magistrados não têm ou formação ou vontade de fazer esse enquadramento. Implica baloiçar as questões, olhar e ver se há de facto uma necessidade imperiosa de restringir a liberdade de expressão. E esse é que é o critério. Há aqui uma necessidade imperiosa? Se não, deve-se respeitar a liberdade de expressão, porque é uma liberdade matricial de uma sociedade democrática.
Num caso recente em que defendeu a ex-eurodeputada Ana Gomes e esta foi absolvida, admitiu que foram usadas expressões excessivas sobre o empresário Mário Ferreira, mas que era uma questão de liberdade de expressão...
Não são criminais. O problema é a distinção. Há imensas coisas que eu defendo de jornalistas, comentadores, políticos, historiadores não porque concorde - o que interessa é que possam dizer. Serão excessivas, se calhar, em termos de educação. Há certas coisas que não é bonito dizer, mas não é crime. Se a pessoa diz coisas que são feias, desagradáveis, incómodas, injustas, é um problema que na arena pública se discutirá, não através da criminalização. O tribunal não é o local ideal para se andar a discutir aquilo que se pode dizer. E é esse o problema. A Dr.ª Ana Gomes é uma pessoa polémica. Temos uma grande tradição de polemistas. O Dr. Francisco Sousa Tavares, que foi diretor d“A Capital”, era uma pessoa contundente nas suas palavras. E essa contundência ajuda-nos, mesmo que não estejamos de acordo, a pensar. A liberdade de expressão é, no meu entender, não o direito a dizer coisas justas, certas, corretas, equilibradas, mas, pelo contrário, haver espaço para tudo o que é injusto, errado, exagerado, excessivo.
Surpreendeu-o a absolvição em primeira instância?
Já em tempos houve um acordão muito interessante do [Tribunal] da Relação do Porto, em que absolveu o jornalista crítico de arte Augusto Seabra [numa polémica com o então presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio]. E agora, pouco tempo antes desta última decisão relativamente à Dr.ª Ana Gomes, já tinha havido uma anterior relativamente ao assistente Mário Ferreira, e que o Tribunal [da Relação do Porto] também considerou que era admissível. O Tribunal explica: “Eu não estou a tomar posição sobre o que senhor é ou não é, o que ele fez ou não fez. Eu estou a dizer é que é admissível que uma pessoa como a Dr.ª Ana Gomes, que tem um determinado tipo de intervenção política e social, possa fazer as críticas que fez”. É só o direito a poder dizer. No [Grande] Porto, eu tive outra decisão, recentemente, em que foi absolvida [em primeira instância] a Dr.ª Fátima Bonifácio, relativamente a um artigo que [aquela historiadora] tinha escrito [no jornal "Público", em 2019] e em que houve uma queixa da SOS Racismo. Curiosamente, tal como neste último processo relativo à Dr.ª Ana Gomes, não houve recurso nem do assistente [ofendido] nem do Ministério Público. Isto é, houve uma aceitação, de facto, da importância da liberdade de expressão. Outra das questões essenciais é que não se pode ler um texto e destacar três ou quatro palavras e dizer crime. Há sempre um subtexto, um contexto, e é preciso compreender.
Há perigo de uma instrumentalização da Justiça, nomeadamente para fazer valer uma ideologia ou calar ativistas?
Não tenho dúvida. Esse combate é permanente, desde o princípio da História. O que há hoje em dia é grandes oligarcas, indivíduos muito ricos e corruptos e ligados a organizações internacionais até de criminalidade, que tentam calar jornalistas de investigação e críticos. Houve uma diretiva aprovada no sentido de combater essas SLAP [Strategic Litigation Against Public Participation]. São ações que visam dissuadir as pessoas de intervir, de participar na vida pública. São ações concertadas no sentido de desgastar, esmoer. É hoje um dos grandes perigos.
No atual contexto europeu, há risco de se restringir a liberdade de imprensa a nível legal?
Até agora, conseguiu-se a publicação dessa diretiva contra essas ações e, portanto, é um passo positivo. Não é tão ampla como deveria ser e reconheço que é complicado depois torná-la efetiva. Agora, se me disser: “Em países da União Europeia onde as regras democráticas ou Estado de Direito estão abalados?” É natural que sim. Até porque há um problema: os juízes não vivem em torres de marfim. Na América, houve um estudo curioso. Quando o Ronald Reagen foi eleito [presidente dos Estados Unidos na década de 1980] sob o signo da “law and order” [“lei e ordem”, em inglês], constatou-se que, para os mesmos crimes, depois da eleição, os tribunais aplicavam penas mais pesadas. E eram exatamente os mesmos casos, nos mesmos tribunais. A mudança do clima político, do ambiente, levava a que os tribunais, sem alteração da lei, aplicassem penas mais pesadas. Não há dúvida de que os tribunais estarão sempre influenciados pelas realidades políticas e sociais das épocas.
O Código Penal português deveria deixar de punir o crime de difamação com prisão?
O movimento para a descriminalização da difamação - para passar só a ser cível, uma questão de prejuízos causados e indemnização - já existe há muitos anos na Europa. Nós mantemos a criminalização e devia, de facto, ser descriminalizada. Mas não é fácil. Esteve cá em tempos uma delegação que veio falar com os parlamentares portugueses e não encontrou recetividade nenhuma quanto à descriminalização da difamação. Nenhuma, de nenhum grupo parlamentar, creio eu. Todos acharam isso um bocado estrambótico, fora do normal. E, portanto, nós ainda temos muita tendência repressiva e vê-se sistematicamente nos debates. Vê-se – em pessoas de Direita e de Esquerda, é igual – que quando uma expressão não lhes agrada e os tribunais consideram que não é crime, dizem “ah, já se pode dizer tudo”. Penso que a liberdade de expressão ainda tem muito caminho para fazer no nosso país, que o TEDH tem uma função pedagógica, e, sobretudo, que já há magistrados que entenderam e integraram a Convenção Europeia dos Direitos Humanos dentro da nossa legislação. Ainda tenho ações lamentáveis. Sinceramente, os tribunais perdem tempo com cada coisa, é tão absurdo... Por outro lado, água mole em pedra dura... Tenho esperança nesse ditado.