A Ordem dos Médicos pediu ao presidente da República e outras entidades que intentem junto do Tribunal Constitucional a fiscalização da norma do Orçamento do Estado que prevê a contratação de médicos não especialistas para funções de médicos de família. A queixa segue também para a Comissão Europeia.
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O documento foi aprovado no plenário do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, na última segunda-feira, e enviado dois dias depois para Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, para Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, para a Procuradoria-Geral da República e para a Provedoria da Justiça.
Na exposição, a Ordem dos Médicos explica que "não detém legitimidade", à luz da lei, para requerer a fiscalização abstrata sucessiva das normas em causa da Lei do Orçamento do Estado 2022 e que, por isso, requer que "seja intentado o competente processo de fiscalização junto do Tribunal Constitucional".
Em causa está a norma que permite a contratação para os centros de saúde de médicos que não têm a especialidade de Medicina Geral e Familiar, mas apenas o curso de Medicina e o primeiro ano de internato geral. Segundo a norma, estes clínicos poderão assumir listas de 1900 utentes, tal como os médicos de família.
Medida suscitou fortes reações e manifestação em Lisboa
A medida surge para colmatar a falta de médicos de família, mas motivou fortes reações dos médicos e até uma manifestação em Lisboa no passado mês de julho.
Segundo a anterior ministra da Saúde, Marta Temido, a ideia era responder apenas aos casos de doença aguda e estes médicos não contariam para os rácios de cobertura de medicina geral e familiar.
Refira-se que a atribuição de médico de família a todos os portugueses têm sido uma promessa falhada dos sucessivos governos. Em agosto, já com os 272 recém-especialistas que se formaram na primeira época deste ano, havia 1, 27 milhões de utentes a descoberto.
Norma discrimina utentes
A Ordem dos Médicos entende que a norma aprovada representa uma "grave violação do direito ao acesso aos cuidados de saúde e no direito à saúde" consagrados na Constituição.
"Ao atribuir a médicos não diferenciados (não especialistas em Medicina Geral e Familiar) a responsabilidade por listas de utentes que não possuem médico de família", o artigo da Lei do Orçamento do Estado 2022 "está, necessariamente, a ferir o princípio da universalidade e a discriminar estes utentes no acesso aos cuidados de saúde primários, impedindo-os de aceder a cuidados diferenciados, sem que existam situações fundamentadas que justifiquem este tratamento desigual", alega a Ordem dos Médicos. Concluindo, assim, que "estão a ser violados os princípios constitucionais da universalidade e da igualdade".
No ofício, a Ordem dos Médicos explica que a atribuição de um médico sem especialidade "não promove sequer um qualquer nível de igualdade face a todos aqueles que já possuem médico de família". Porque, refere, aquele utente que usualmente acede à "consulta aberta e/ou complementar", na qual é atendido por um especialista, "deixa de o fazer".
Utente sem médico especialista até três anos
A carta salienta também que a "medida a adotar nem sequer é provisória", uma vez que o contrato do médico não diferenciado pode atingir até três anos de vigência, o que quer dizer que o utente pode permanecer na lista do clínico não especialista por esse período de tempo.
"Isto é, a medida preconizada vem ainda agudizar mais a situação de desigualdade de todos aqueles utentes que não têm médico de família especialista em Medicina Geral e Familiar atribuído, constituindo um fator de discriminação infundada", pode ler-se na carta.
Além de constituir "uma violação das qualificações profissionais e das carreiras médicas, a norma representa também um "recuo na qualidade dos cuidados de saúde primários que, de há décadas, contribuem para a melhoria dos índices de saúde em Portugal".
Os médicos consideram que a medida consubtancia também "uma grave violação do Direito da União Europeia", porque coloca em causa obrigações dos Estados-membros sobre o reconhecimento das qualificações profissionais.
Por essa razão, e por considerar que a disposição "coloca em crise normas de direito da União Europeia", a Ordem dos Médicos enviou a exposição também à Comissão Europeia.