Historiador Pacheco Pereira defende que a retórica sobre a paz tem de condenar de forma assertiva a invasão da Ucrânia.
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Filósofo, político, historiador, foi um revolucionário de Abril de 74. Militou na extrema-esquerda e acabou líder parlamentar do PSD, mas é hoje crítico de ambos os quadrantes. Analisa a decadência do PCP e as perdas que daí decorrem para o sindicalismo, enquanto à Direita responsabiliza Cavaco Silva pela crise organizacional e Passos Coelho pela crise ideológica. Numa altura em que a Europa redescobriu a "força bruta", sublinha que qualquer retórica sobre a paz tem de começar pela condenação assertiva da invasão da Ucrânia.
Tem alertado, ao longo dos anos, que a liberdade não é um direito adquirido. A invasão da Ucrânia mostrou-nos com maior evidência riscos que julgávamos ultrapassados?
A liberdade e a democracia são escolhas das pessoas. Não existem na natureza. Na natureza, as pessoas comem-se umas às outras. São escolhas que têm uma componente cultural, de mundivisão. E é por isso que são frágeis. A guerra na Ucrânia revela uma realidade que nós, na Europa, já tínhamos esquecido há muito, que é a força bruta. A substituição de qualquer argumento que possa ser discutido em liberdade e em democracia pelo exercício direto da força. Essa força exerce-se em termos da soberania, que é relevante para a liberdade e para a democracia porque o controlo da vida pública faz-se em grande parte dentro das nações. Isto não significa, como muitas vezes se diz, que o combate que se passa na Ucrânia seja necessariamente um combate democracia versus autocracia. É um combate pelo direito de as nações e os povos se controlarem a si próprios, da liberdade para o fazerem. Se daqui vai resultar um reforço da democracia na Ucrânia, espero que sim.
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Populismo, mecanismos de controlo tecnológico, como sejam as ferramentas digitais, ou pobreza: onde estão hoje as maiores ameaças à nossa liberdade?
São três coisas que vêm em pacote. Se se pegar em duas palavras que desde os gregos são relevantes para esta análise - democracia e demagogia -, elas são muito parecidas. Os seus mecanismos são muito próximos. Ambas têm, de alguma forma, a manifestação da vontade popular. Só que a democracia introduz um conjunto de mediações, o princípio da representação, e estes mecanismos é que diferenciam a demagogia e o populismo da democracia. O que acontece hoje com as novas tecnologias é que elas reforçam o populismo. Houve um grande deslumbramento tecnológico com o aparecimento dos blogues, com o Twitter, as redes sociais, crendo que estes espaços sem mediação podiam ser uma nova forma de revitalizar a democracia. Não são.
A mediação é fundamental em democracia?
Por isso, é preciso defender o jornalismo, que é uma atividade mediada por critérios profissionais e de deontologia. Diferente, por exemplo, daquele que se chama de jornalismo de cidadão, que não é jornalismo, ou o que se passa nas redes sociais. Quando vejo um jornalista suicidar-se em público, o suicídio é sempre este: "como me dizem as redes sociais" ou "ele foi arrasado pelas redes sociais" ou "as redes sociais estão indignadas". Isto é algo que um jornalista não pode fazer. No caso português em particular, estamos a falar de um universo muito pequeno, que reage a estímulos e funciona de uma maneira que nada tem a ver com uma discussão jornalística ou mediada pelos critérios da prudência.
Muito do jornalismo de hoje não é mediador, é amplificador?
Pela pressão do mercado, mas também pela pressão de uma certa degradação da opção deontológica do exercício do jornalismo e também pelas modas, este aspeto de mediação perde-se. E o populismo responde a isso substituindo o acesso à informação tratada profissionalmente por boatos, calúnias e aquilo que circula nas redes sociais e isso é mau para a democracia.
E a pobreza, como entra nesta equação?
Também tem muito a ver com isto, porque ela é sempre um mecanismo de exclusão. Os mais ricos, os que vivem melhor, têm acesso a coisas que os mais pobres não têm e uma dessas coisas é a cultura, a informação, a capacidade de se expressar. Quando as pessoas, por exemplo, diminuem o seu vocabulário praticamente aos SMS e aos tweets, a sua capacidade expressiva diminui consideravelmente. E isto significa perda de poder. Tem muito a ver com falhanços do sistema escolar, mas também com a substituição de uma cultura de esforço por uma de facilidade e por uma ignorância arrogante, que é muito comum nas redes sociais.
Preocupa-o o risco de uma deriva militarista da União Europeia, por via da ajuda militar ou pelo compromisso de se gastar cada vez mais dinheiro em Defesa?
Eu conheço os argumentos, nomeadamente que o PCP dá sobre essa matéria. Acho que é uma coisa sem pés nem cabeça. O que é que se espera que aconteça quando se invade um país? Por que razão é que um país como a Suíça acabou por tomar medidas contra a Federação Russa, o que se espera quando um país como a Suécia ou a Finlândia, com longas tradições de neutralidade, se preparam para entrar para a NATO? Atacados daquela maneira, sem nenhuma provocação, nem nenhum motivo direto (há razões de fundo, mas nenhuma justifica o que se está a passar), o que se espera que as pessoas queiram? Armar-se! Terem mecanismos para se defenderem. A retórica sobre a paz tem de começar por dizer que a Ucrânia foi invadida e nós condenamos claramente a invasão. E depois, a partir daí, diga: os ucranianos têm direito de se defender, independentemente do regime ucraniano. A Federação Russa não invadiu a Ucrânia por ser um país nazi. É uma treta. Não significa que não haja uma extrema-direita muito agressiva na Ucrânia. Invadiu a Ucrânia dentro de um plano, uma política que é claramente de reconstituição do império russo.
Como é que olha para a posição do PCP, para o buraco no Parlamento quando Zelensky discursou?
Eu acho que o PCP se meteu num buraco. E quem está dentro do buraco não vê nada à volta. E mais: está a agravar o buraco por um processo que nós sabemos que é psicológico, político, começou com uma argumentação apesar de tudo mais moderada e agora vai tendo uma argumentação cada vez mais radical, incorporando cada vez mais a propaganda russa. E isso é muito mau para o PCP e para a vida política democrática em Portugal. Qual é o grande erro estratégico e político do PCP? É que sabendo quem é o Putin, tem feito um esforço para não se colar ao Putin, mas a verdade é que isso resulta como uma espécie de hipocrisia, porque nunca tem em conta quem começou a guerra e quem é o outro lado.
Antevê um impacto grande em termos eleitorais?
Vai ter, sem dúvida. O que se está a assistir é a uma radicalização do PCP, principalmente dos mais novos. Os setores neste momento mais radicais, pró-russos ou os que mais justificam a invasão da Ucrânia, são os mais novos. Os mais velhos já viram muita coisa.
Há um desconhecimento da História?
É não só um desconhecimento da História, como deixarem-se encurralar numa ideia de anti-imperialismo que só tem um lado. Não tenho dúvidas nenhumas que a militantes mais velhos, que têm mais experiência, que já viram muita coisa, têm inclusive em alguns casos a experiência antes do 25 de Abril, isto os incomoda e muito. Agora, há uma parte dos militantes do PCP à qual isto não incomoda nada, pelo contrário. É o "orgulhosamente sós". E nem sequer perceberam que há aqui um problema de honra perdida. O PC perdeu a honra, porque o PC tinha uma linguagem patriótica, muitas vezes até nacionalista, uma linguagem contra a União Europeia que tinha elementos soberanistas. É difícil manter uma linguagem desse género quando se aceita uma invasão sem nenhum motivo sério, imediato, provocatório da Ucrânia. Isto cria um desgaste enorme no PCP, que se soma depois à decadência que já existia no plano eleitoral. A perda de influência no sistema político português não afeta só os militantes, nem a direção do PCP, afeta por exemplo o mundo sindical.
É o reduto do PCP.
A presença da CGTP é relevante nos conflitos sociais para muita gente que não tem outra voz. Há muita gente que não tem voz nenhuma no sistema político, nem nas instituições, e nenhuma voz para defender no fundo o seu direito ao salário, a sua defesa no despedimento, essas pessoas não têm. Aliás, por erros de partidos como o PS e o PSD, que deveriam estar mais atentos a essa realidade. Quem ganha com os erros do PCP é, para utilizar uma linguagem do género do PCP, o patronato.
E a extrema-direita também? Que, de algum modo, se apropria do descontentamento?
Sim e a extrema-direita. A radicalização da Direita teve sempre uma componente anticomunista, que agora é muito agravada. É cobarde, porque no fundo querem que o PCP seja ilegalizado, mas não têm coragem de o dizer.
Para quando é que poderemos esperar o desenvolvimento da biografia de Álvaro Cunhal? Tem esperança ainda de alguma vez ser permitido o acesso ao arquivo do PCP e de conseguir aprofundar muitos dos aspetos que giram em torno do PREC, do 25 de novembro, etc.?
As minhas relações com o PCP nessa matéria variaram muito conforme os anos. Cheguei a uma altura em que fiz um pedido formal de acesso ao arquivo e foi-me respondido que havia uma infestação de abelhas, ao que eu respondi: "eu vou vestido de apicultor, não há problema nenhum". Evidentemente, não aconteceu nada. Normalmente, o arquivo do PCP está fechado a tudo aquilo que interessa. No último volume, já consegui pedir doze documentos e recebi dois, o que é uma verdadeira revolução. Neste, também já pedi algumas coisas e vou pedir outras. Faço esses pedidos já numa fase avançada do trabalho. Porquê? Porque tenho que ter a certeza que eles existem, que os posso descrever, e que eles estão no arquivo do PCP. Quando não há cá, tento arranjar noutro sítio. Por exemplo, o Partido Comunista Português correspondia-se com o francês, correspondia-se com o italiano, correspondia-se com o espanhol, correspondia-se com o romeno, com quem tinha, aliás, muito boas relações, com o russo, com o da RDA. Tenho que juntar estas coisas todas, mas faz-me imensa falta. Este volume já tem o problema de haver muitos testemunhos e poucos documentos realmente importantes, centrais.
O trabalho que tem desenvolvido através da associação cultural Ephemera é único em Portugal e muito pouco visto na Europa. O modelo de uma fundação será o que mais se adequa para assegurar o futuro?
Sim e não. A associação cultural Ephemera é mais parecida com as experiências anglo-saxónicas do que propriamente do resto da Europa. Há coisas semelhantes no Reino Unido e nos Estados Unidos. Têm é uma dimensão, apesar de tudo, mais pequena. Eu tenho várias vezes falado com os responsáveis pela legislação sobre as fundações, chamando a atenção que nós quereríamos uma mudança da lei que conjugasse a solidez patrimonial das fundações com o estilo de trabalho na base de voluntários, que é o que nós temos, ou das "charities" inglesas. Eles dizem sim, sim, mas depois a coisa nunca mais avança. Ou porque se vão embora para a Europa ou porque cai o Governo.
Jorge Moreira da Silva ou Luís Montenegro: qual é a sua preferência, ou falta ainda um terceiro candidato que possa servir melhor o PSD?
Eu não tenho tido tempo para ler nem para ver nada nestes dias. Só vou começar a pensar sobre essas coisas depois do 1.º de Maio.
Vai tentar escapar à pergunta...
Do que ouvi até agora, pareceu-me, apesar de tudo, haver maior solidez no que diz Moreira da Silva. Mas é só isso. Daqui não se infere mais nada do que esse julgamento. Portanto, eu irei ver, como sou um militante do PSD com quotas em dia, votarei num dos dois, ou em nenhum, ou num terceiro, não sei. Depois se verá.
Teme que o PSD possa vir a ser, depois do CDS, o próximo partido a entrar em erosão?
O PSD já entrou em erosão. E não é nova e não depende apenas destes últimos anos. É uma crise. As pessoas acham que a força de um partido se mede nos resultados eleitorais. Não é verdade. Um partido pode ter gigantescos resultados eleitorais e, no entanto, estar a morrer por dentro, ou a perder força por dentro. Eu acho que há uma realidade objetiva: o PSD é hoje um partido médio. Se a atuação dentro do PSD for feita com a nostalgia do grande partido, o que significa lidar com o Chega e com a Iniciativa Liberal, nós ainda vamos ser mais médios. Tem que haver uma consciência de que um partido, mesmo como está, pode ter um papel fundamental na vida política portuguesa, mantendo a tradição de ser não um partido de Direita... Eu gostava de oferecer aos candidatos o que Sá Carneiro disse de substancial por que razão é que o PSD não é um partido de Direita. A seriedade com que ele analisava a questão da social-democracia. Não é nada de época. A tentativa de criar o PSD com uma cabeça, uma frente de Direita, é evidentemente péssima para o sistema político. Porque a frente de Esquerda tem mais gente. E ganha, se for assim. Mas há que fazer uma reflexão profunda das causas da crise no interior do PSD. Que é uma crise ideológica, que data do Governo de Passos Coelho. É uma crise organizacional, que data de Cavaco Silva. É uma crise de influência na sociedade. Há um problema de degradação do mérito social e profissional, que é fundamental para um partido político. v
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF