Durante anos, acolheram em suas casas crianças ucranianas num programa de férias de verão. Criaram laços e agora vivem angustiados a guerra ao minuto, com dificuldades em saber dos seus.
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Com o escalar da guerra na Ucrânia, multiplicam-se os dias angustiantes, às vezes sem notícias, vividos pelas famílias portuguesas que no verão recebiam meninos da zona de Chernobyl para passarem um mês de férias junto à praia, livres da radiação a que vivem expostos por morarem demasiado perto da central nuclear que explodiu em abril de 1986. Muitas estão agora dispostas a acolhê-los - e aos familiares - em suas casas. São os "filhos ucranianos" que o extinto projeto Verão Azul, organizado até 2018 pela seguradora Liberty, trazia às famílias de coração em Portugal e que a guerra afastou.
Ílhavo: mensagem diária dá esperança
Uma mensagem diária simplesmente a dizer "estamos vivas", enviada pela mãe da pequena Kateryna, 13 anos, é o que vai dando esperança à família de Alice Sardo e Pedro Viçoso, em Ílhavo, que, ao abrigo do programa Verão Azul, começou a receber a jovem em 2016. O projeto terminou e a pandemia dificultou as viagens, interrompendo as habituais férias dos meninos da zona de Chernobyl. Mas as saudades não cessaram e, por isso, com a ajuda de uma associação estrangeira, o casal conseguiu recentemente trazer a jovem para passar um mês em Portugal, tendo regressado à Ucrânia em janeiro.
"Ficamos mais unidos", explica Pedro, que, tal como Alice, mal dorme para acompanhar as notícias sobre a ocupação russa. Enquanto a menina cá esteve, o casal chegou a perguntar -lhe se tinha medo da instabilidade na terra natal. A resposta foi: "Estamos habituados. O Putin é muito blá-blá-blá e nós somos fortes". Mas, pouco depois da partida, chegaram os ataques.
A ocupação chegou a Ivankik, perto de Kiev, onde está Kateryna. "Destruíram a cidade dela e, quando soubemos, tinha saído de casa e estava numa cave, num refúgio", conta Alice. As comunicações pela Internet escassearam e foram aconselhados a evitar contactos longos por telefone para evitar que, através da geolocalização, quem está escondido fosse descoberto. "A mãe de Kateryna todos os dias manda uma mensagem a dizer: "estamos vivas"", revela Alice. "Não sabemos as condições em que está, se tem comida, água potável", mas está viva, e isso dá esperança.
Em Portugal, as portas estão abertas para receber a família que, neste caso, são Kateryna e a mãe. "No início, pensávamos na Kateryna porque temos uma ligação com ela. Da última vez que cá esteve até nos disse que tem um pé em Portugal e outro na Ucrânia e isso comoveu-nos", relata Alice. Mas depois o casal percebeu que poderá ser necessário acolher também a mãe. "Obriga a outra logística", refere Pedro, explicando que amigos já estão a disponibilizar "casas de férias e poderão ajudar".
Gaia: angustiados por não terem notícias
Na casa de Margarida e Luís Leite, a angústia tem os nomes de Karolina e de Mira. E de Dacha, a menina que era acolhida ali ao lado, em Espinho, pela família do irmão de Margarida, o jornalista Mário Augusto. Falaram-se pela última vez no primeiro dia da invasão: Mira e Dacha, que são vizinhas numa das paupérrimas aldeias ao redor da agora destruída cidade de Ivankiv, desciam com as famílias para um abrigo subterrâneo. Depois, o silêncio. Até hoje.
Foi por volta das 14 horas. Era uma videochamada. Luís atendeu. "Foram quatro minutos de conversa: "beijinhos e muita força"; não conseguimos dizer mais nada. Elas estavam com medo, porque ouviam as explosões lá fora" - o olhar dele volta a pousar no telemóvel mudo. "A conversa foi só para chorar", recordaria Margarida. "Foi horrível; elas choravam tanto. Nós a vê-las e elas a verem-nos". O marido atalha: "nunca pensei viver isto em pleno século XXI".
Luís volta a pôr os olhos no telemóvel. Desilude-se, de novo. "Tenho enviado mensagens, mas não estão a lê-las...". Margarida explica que "elas estão sem eletricidade e que a net, que já era muito fraca, está pior com tudo isto". Foi a sobrinha Rita quem conseguiu notícias das duas adolescentes, ao pesquisar contactos de familiares nas redes sociais. A tia de Mira acabaria por lhe garantir que ambas estão bem, no abrigo. Rita falou-lhe do desejo dos pais, Paula e Mário Augusto, e dos tios de acolher em Portugal as famílias de Mira e Dacha. "Neste momento, é o meu maior sonho", confessa Paula Bulhosa, que ficou "na cabeça com a imagem" das meninas a descer para o abrigo. Conta que conseguiu falar com Karolina, que já é adulta e lhe disse que "ia sendo alvejada ao fugir de Kiev".
"Isto é uma angústia. Estamos sempre a pensar nelas, com o coração nas mãos, preocupados e sem saber se estão bem. Se elas puderem sair de lá e quiserem vir para cá, acolhemos a família toda, sem dúvida", garante Margarida, mergulhada nas fotos de verões felizes, onde vivem os sorrisos das meninas ucranianas. "A Mira diz que somos "a mamã e o papá de Portugal"", enternece-se.
Fernando Pinho, antigo funcionário da Liberty e coordenador do Verão Azul, assegura que "as famílias estão na disposição de receber as crianças". Com a guerra, há, porém, "um número significativo com as quais não se tem contacto", lamenta.
Ílhavo: "Cada hora é uma incógnita"
Lurdes Vieira, de Ílhavo, tem a voz embargada quando fala de Diana, a menina de Chernobyl a quem abriram as portas de casa e do coração em 2018, quando tinha apenas 10 anos. Apesar do interregno devido à covid-19 e fim do programa Verão Azul, "nunca perdemos o contacto com ela".
As barreiras provocadas pela diferença da língua e pelo facto de a jovem ser "envergonhada" foram sendo derrubadas com recurso ao tradutor da Internet e umas palavras conhecidas em inglês que ajudam a mandar mensagens por WhatsApp. No último Natal, passou um mês em Ílhavo, mas teve de voltar para casa em meados de janeiro.
Lurdes nunca mais teve paz. Desde que chegaram as notícias da guerra, "tem sido uma aflição permanente. Não temos notícias dela com frequência, porque a família está na zona ocupada. Estão lá fechados, sob fogo, não podem sair. Tem sido preocupante".
Nos outros anos, "estávamos afastadas, mas eu estava tranquila, porque sabia que a Diana estava bem". Agora, "cada hora para mim é uma incógnita". As mensagens, da Diana ou dos pais, chegam a conta-gotas, com dias e dias de intervalo.
"É muito angustiante", insiste, explicando que a jovem, o irmão mais novo e os pais estão "presos". "Não conseguem sair. Não é seguro, a zona está sob domínio russo. Vemos vídeos e sabemos que o local onde moram está muito destruído", diz, com voz embargada.
A família espera que haja um cessar-fogo e que as organizações internacionais ou associações consigam retirar de lá a "sua" Diana. "Estamos disponíveis para acolher pelo menos a Diana e o irmão mais novo. O pai é militar, sei que não vem. A mãe, não sei se quererá vir, mas, se quiser, também a recebemos".