Há quem dê cabazes alimentares ou confecione refeições em casa para serem doadas e até quem disponibilize autocaravanas para os profissionais de saúde descansarem. Por todo o país, são milhares de voluntários prontos para responder em várias frentes.
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As filas de ambulâncias à porta dos hospitais, os idosos que se fecharam sozinhos em casa, as famílias que perderam os empregos e já não têm dinheiro para pôr comida na mesa ou as crianças e jovens com ensino limitado por falta de computadores. A pandemia de covid-19 trouxe dificuldades a vários níveis e deu origem a diferentes dramas sociais, mas também desencadeou uma onda de solidariedade do Norte ao Sul do país, com milhares de voluntários que, tanto dão camas a profissionais de saúde para descansarem, como enchem sacos de compras para tirar a fome a quem precisa.
Habituados a assistir à entreajuda entre vizinhos e à proximidade das juntas de freguesias e autarquias em territórios de pequena e média dimensão, o fenómeno tem assumido especial relevância, porque tem percorrido grandes cidades, onde as pessoas costumam estar mais focadas no seu dia-a-dia, do que em alimentar relações interpessoais com a comunidade mais próxima.
A fila de ambulâncias que se formou à porta do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, no pico da terceira vaga da pandemia, foi o ponto de partida para, por exemplo, Ricardo Paiágua avançar com o movimento "Cama solidária", que disponibiliza autocaravanas para os profissionais de saúde poderem repousar. Em cerca de três semanas, são já 600 os veículos cedidos e mais de um milhar de voluntários envolvidos numa operação que partiu da capital, mas já chegou às unidades de saúde do Norte do país, como o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.
Computadores para jovens, companhia para idosos
Ao mesmo tempo, o fundador da agência de criatividade "uppOut" desenvolveu o projeto "computador solidário", a pensar nos estudantes que não têm equipamentos para o ensino à distância. Os últimos cálculos davam conta de 400 pedidos e 500 pessoas disponíveis para doar computadores.
Também a partir de Lisboa, um grupo de ex-estudantes começou, em março do ano passado, o projeto "Vizinho amigo", que já angariou por todo o país quase 7000 voluntários para fazer recados a idosos ou grupos de risco que estejam isolados em casa. Ainda na capital, um conjunto de voluntários começou a confecionar "comida de conforto" para profissionais do Hospital de Santa Maria. A mentora foi Sofia Magalhães, autora do Blog da Spice, sensibilizada pelas imagens do caos à porta do equipamento hospitalar, nas últimas semanas.
Os gestos de bondade multiplicam-se noutras cidades do país. Em Vila do Conde, por exemplo, a Associação Desportiva Forças de Segurança Unidas entregou, no último mês, cabazes alimentares a famílias carenciadas de Árvore. Em Famalicão, a Autarquia reforçou a campanha do "Banco de móveis solidário".
Ainda não estava anunciado o primeiro confinamento, quando percebemos que a desgraça não ia ser só em termos de saúde
Juntam-se a estas causas todo o tipo de pessoas, de estudantes a desempregados. É o caso de Diana Barbosa, com 47 anos, que não tem ocupação profissional "por opção" e decidiu preencher algumas horas do seu dia a ajudar na cozinha solidária do "Virar a Página".
Atualmente a confecionar refeições a partir do Centro Paroquial de Gualtar, em Braga, o projeto nasceu na cantina do colégio Clib, depois de um repto lançado nas redes sociais pela diretora, Helena Pina-Vaz, em março do ano passado, quando viu que organizações como a Refood - agora em funcionamento noutros moldes - estavam em dificuldades.
"Ainda não estava anunciado o primeiro confinamento, quando percebemos que a desgraça não ia ser só em termos de saúde", recorda a responsável, sublinhando que, um dia depois de lançar o desafio, já tinha dezenas de voluntários e pedidos de ajuda. "Num sábado, o colégio deu a ideia. Na segunda-feira, começámos a ajudar 58 pessoas e, depois, foi crescendo imenso", conta Helena Pina-Vaz, falando de mais de 120 mil refeições que já foram distribuídas por 700 pessoas, em 11 meses. Atualmente, estão a confecionar 470 pratos, por dia, para tirar a fome a 123 famílias.
Na cozinha, o ritmo é frenético. Enquanto uns tratam dos alimentos, outros cozinham e embalam a comida em frascos ou caixas reaproveitadas. "Está tudo atento às suas tarefas, ninguém pára", constata Diana Barbosa, que chegou a esta equipa de voluntários em junho. Foi nessa altura que, também, chegou Inês Ferreira, de 26 anos. Atualmente sem emprego, diz que se sente "útil" nesta missão. "Desde o início do confinamento que tem havido mais pedidos", atesta a bracarense, responsável por gerir os voluntários. São um total de 240 pessoas que se dividem por diferentes tarefas, desde recolha de alimentos à distribuição.
entrar na vida das pessoas, os problemas delas entram em nós. Tentamos fazer a recolha de brinquedos, eletrodomésticos e encontrar emprego
Os carros arrancam pelas 12 horas com malas cheias de comida, devidamente identificadas por utentes e sempre acompanhadas com uma mensagem de esperança. Só nas residências universitárias estão 13 estudantes beneficiários. É o caso de Kelson, que justifica a emergência com as dificuldades da família em transferir dinheiro de Angola. "Entrei em contacto com universidade e fiz um pedido para receber alimentação, mas não estavam a atender, porque já tinham muitos pedidos", lamenta.
Depois dos estudantes, as voluntárias Arminda Cunha e Sandra Barbosa seguem viagem para bater a outras portas. Há casos de famílias novas a receber ajuda, como uma cidadã brasileira que não foi aceite num trabalho por estar grávida. O marido, também, não tem emprego fixo. "Nunca me imaginei nesta situação", lamenta.
"Não damos só alimentação a quem não a tem suficiente. Ao entrar na vida das pessoas, os problemas delas entram em nós. Tentamos fazer a recolha de brinquedos, eletrodomésticos e encontrar emprego", refere Helena Pina-Vaz, apelando a donativos para o projeto continuar vivo